5.3.4. As Bases Teóricas da Peads – 04: A Visão de Mundo

6.3.4. As Bases Teóricas da Peads – 04: A Visão de Mundo

4.4 A Visão de Mundo na Peads

Toda a vontade de descobrir novos papéis para a Escola, de construir uma ética e uma teoria do conhecimento, de ter um projeto político-pedagógico tinha como pano de fundo uma visão de mundo, que também estava em construção. O trabalho no Cecapas de 1984 a 1989 abriu novas dimensões para pensar o mundo. Além de práticas, dinâmicas, vivências, tivemos acesso a uma vasta literatura sobre meio ambiente. Porém, nossa preocupação pelo meio ambiente tinha característica muito própria em relação ao comum dos movimentos ambientalistas da época. Não conseguíamos separar o desafio das espécies em extinção do desequilíbrio ambiental, das catástrofes, da degradação dos solos, do desmatamento, da poluição, do desafio de melhorar a produção e a produtividade dos agricultores, da necessidade de recuperar a autoestima e a autoconfiança dos mesmos e de buscar tecnologias e conhecimentos para responder a esse desafio, como também do empenho e compromisso em construir políticas públicas favoráveis a um desenvolvimento com sustentabilidade.

Não víamos como atacar um problema sem a visão do conjunto, do todo, sem a interdimensionalidade e interdisciplinaridade. Quando passamos depois, no Serta, a fazer a capacitação de professoras, havia sempre um fato que as deixava curiosas. Era saber qual era a formação profissional dos membros da nossa equipe. Pedíamos sempre que elas adivinhassem a partir do que haviam percebido com a nossa participação. Diziam que éramos sociólogos, jornalistas, pedagogos, agrônomos, veterinários, economistas. E, no entanto, nenhum desses profissionais existia na equipe. Perguntávamos, então, porque elas imaginavam que fôssemos esses profissionais. A resposta era sempre muito parecida, achavam que nós falávamos com domínio sobre questões relacionadas com essas profissões. Reagiam com grande surpresa quando sabiam que na equipe existia um filósofo, um geógrafo, e os demais eram técnicos em agropecuária.1

Explicávamos para elas que não tínhamos domínio das ciências, mas tínhamos uma maneira muito própria de olhar para o conhecimento e para as instituições que o produzem, fosse a Escola ou a Universidade. Sentíamo-nos comprometidos em melhorar a nossa relação com o mundo, com as pessoas, com o meio ambiente, usando o conhecimento como instrumento e ferramenta privilegiados. A nossa relação com o meio ambiente passava pela relação que tínhamos com a ciência. A concepção de ciência do Ocidente não favorecia uma compreensão adequada do meio ambiente. Nem como filosofia nem como ciência instrumental. A postura de considerar a pessoa humana como senhora, dona e dominadora da natureza já implica prejuízos e preconceitos difíceis de serem superados para uma compreensão do meio ambiente.2

A História que o diga! O período de expansão das ciências coincidiu com o da expansão colonial, da exploração dos recursos naturais, do domínio do europeu sobre os índios e os negros, com a extração de riquezas naturais. Tudo isso supôs que o homem ou a mulher estavam fora da condição terrena, da natureza, que não deviam obedecer a suas leis, muito pelo contrário: deviam superá-las, subjugá-las e colocá-las ao seu serviço. Segundo Bacon, a natureza deveria ser tratada do mesmo jeito que ele tratava as bruxas na Inglaterra, torturava-as para que revelassem os seus segredos. Essa concepção faz parte de toda a cultura ocidental. Está no inconsciente coletivo tanto das elites governamentais, das universidades, como dos agricultores mais simples. Usam da natureza para os seus interesses. Desfrutam o máximo que podem até acabar. O agricultor toca fogo, deixa o solo descoberto, contamina as águas, desmata sem critério. Quando fertiliza, é para tirar ainda mais proveito, sem se perguntar se é bom ou não para a natureza. Quando não tem mais como explorá-la, uma vez que já esgotou suas possibilidades, abandona ou vende seu pedaço de terra. No caso das fronteiras agrícolas, avança mais para outras regiões, deixando a anterior, como aconteceu com o café, a cana, a soja. É sempre muito parecido com o que os colonizadores e exploradores fizeram com os colonizados, tão bem analisado por Eduardo Galeano em seu livro Veias Abertas da América Latina.

Nossas perguntas eram para saber se, com essa cultura e mentalidade, seria possível fazer outro tipo de agricultura, de desenvolvimento; saber se haveria outra forma de produzir, se haveria outras técnicas, outros conhecimentos ou outras formas de relação e abordagem com a natureza. Essas perguntas estendiam-se também por novas relações entre as pessoas, as etnias, as gerações, as classes, as minorias, as nações, os gêneros. Para nós, perguntar pelas relações com o meio ambiente implicava essas outras relações. Não aceitávamos discutir meio ambiente sem discutir renda, produção, produtividade, desenvolvimento, infraestrutura; enfim, não dava para pensar meio ambiente sem pensar em políticas públicas para um conjunto de realidades interligadas.

Era constrangedor participar de encontros e seminários e ver as discussões setorizadas, compartimentadas, isoladas, apresentadas como Desenvolvimento Sustentável por peritos ou leigos. Eram formas de concepções setorizadas das ciências disfarçadas em Desenvolvimento Sustentável. Ainda assim, aceitamos usar o nome em voga e contribuir com a conceituação do mesmo. As visões foram clareando a ideia e, hoje, o termo está sendo aceito pelos documentos oficiais, da ONU até os municípios. Foi adquirindo uma aceitação e uma legitimação universal. Passou a ser uma força convocatória para instituições públicas e privadas, movimentos sociais e cooperação internacional. A partir de então, ninguém mais apresenta um projeto para ser negociado que não defenda a tese do Desenvolvimento Sustentável – DS.

Porém, percebíamos que estava longe de ser um termo unívoco, tendo o mesmo significado para pessoas diferentes que o usavam. Para uma melhor compreensão, foram se acrescentando adjetivos: local, integrado. A equipe do Serta sentiu algo parecido com o que sentiu a respeito do Peti. Apresentava-se como um programa de educação e promoção social, melhorava a merenda, o material didático, ampliava a jornada de estudo e a infraestrutura física da escola, mas não entrava no eixo da concepção da Educação, do papel que essa teria de exercer nos alunos e na comunidade. As discussões sobre DLIS vêm se apresentando como uma questão operacional, mecânica, de juntar esforços, atores, recursos, de fazer bem-feitas as articulações e concertações políticas. Como uma questão de Planejamento Estratégico dos municípios ou consórcios, como questão de escutar os interesses dos vários segmentos sociais, como uma questão de diálogo entre a sociedade civil e o Governo.

Tudo isso faz parte, como os benefícios trazidos pelo Peti também fazem parte do desenvolvimento. Tudo isso são componentes do processo de construção do desenvolvimento, mas fazem parte dos meios, dos instrumentos, das ferramentas, das estratégias de operacionalização. Não dão conta dos fins, não exprimem as concepções mais profundas. Pertencem ainda ao paradigma tradicional das ciências. Entre nós da equipe, dizemos que fazem parte da mudança de atitudes, mas não da mudança de paradigmas. Correspondem ao didático na Escola: produz informação nova, facilita a abordagem das questões, motiva mais os envolvidos, sensibiliza e mobiliza a população, aproxima as instituições num ideário novo. Participamos de tudo isso, mas sentíamos ainda falta de algo mais profundo e consistente, que desse mais unidade, mais organicidade, incluísse mais ética, mais valores.3

Exemplificando melhor, essas dimensões cabem dentro de uma visão de Educação que tem a disciplina de Educação Ambiental, a de Cooperativismo, a de Educação Artística, ou a de Pluralidade Cultural, ou a que trata alguns temas de forma transversal. Na Peads é diferente. Na Peads, toda a educação tem que ser ambiental, todas as disciplinas são ambientais, tanto o Português como a Matemática, a Geografia ou a História; como toda a Educação tem que levar em conta a pluralidade. Tudo na Escola deve estimular a cooperação: os textos, os cálculos, a distribuição das tarefas, os valores transmitidos. Enfoques maiores ou predominâncias, em algum momento da formação, em um ou outro tipo de conhecimento, habilidade e valor, são compreensíveis. Agora, estabelecer Educação Ambiental ou Cultural como se fosse uma disciplina específica e a Matemática ou o Português como se não fossem ambientais não cabe na Peads.

Assim, na construção do DS, não dá para entender que se faça uma saúde para o desenvolvimento, uma agricultura para o desenvolvimento, e que a Escola não seja para o desenvolvimento. A recíproca é também verdadeira. Não combina uma Secretaria de Obras e Saneamento que seja ecológica e uma de Administração e Finanças que não seja. Daí a convicção de que não dá para mexer na Educação sem mexer nas demais secretarias do município; daí não se discutir Peads como se fosse uma tarefa da Secretaria de Educação, e sim como decisão política dos gestores públicos e da sociedade civil.

Tudo isso faz parte da visão de mundo e das relações entre natureza e pessoa que alimentamos. Na nossa visão, a natureza não é uma realidade morta, não somos nós que definimos suas regras. Não estamos fora ou acima dela, fazemos parte e estamos dentro dela, com uma qualidade muito original em relação à maioria dos demais seres: a capacidade de alterar o seu ritmo, de ir contra ou a favor dela, a capacidade de escolher. Ser a favor da natureza não é mais um discurso romântico e saudosista, não é mais um pensamento religioso ou mítico contra a modernidade e a ciência. Não é mais patrimônio de movimentos ambientalistas ou de partidos verdes, não é mais tarefa dos biólogos. Nem, muito menos, coisa de esotéricos, astrólogos, religiosos orientais ou incas. Nem também pensamento medieval da unidade entre o homem e o sobrenatural.

Hoje há um paradigma novo e inovador da ciência e do conhecimento humano. A ciência vem reconstruindo seus paradigmas, como tão bem nos mostrou Thomaz Kuhn. Pensar novas relações com a natureza e o meio ambiente faz parte da ciência mais avançada; é tarefa de quem rompeu os paradigmas tradicionais do iluminismo, positivismo, idealismo, pragmatismo e de tantos outros “ismos”. É a visão de uma ciência mais humilde, que não menospreza mais o conhecimento popular, religioso, mítico, poético, artístico, sensível, prático, filosófico… Muito pelo contrário: interage, pesquisa, valora e se autocritica. Veremos como, tanto na escola como no desenvolvimento municipal, todas essas formas de conhecimento estão interagindo, sendo recuperadas e tratadas. Não é possível pensar DS só com o conhecimento científico, sem emoção, sem sentimento, sem valor, sem vontade, sem arte, sem espiritualidade. E espiritualidade não se reduz ao campo religioso: transcende-o.4

Nesse sentido, o pensamento ocidental é muito pobre, muito segmentado, compartimentado. Percebe a realidade em pedaços isolados. Divide tudo, disseca a menor parte das coisas e tem dificuldade de juntar, de integrar no conjunto maior. Separa o espiritual do material, o econômico do político, o técnico do social, o produtivo do ambiental, o popular do científico, o local do universal. No desafio concreto de contribuir com a melhora da produção e da produtividade dos camponeses, tínhamos a necessidade de um conhecimento mais integrado. Nesse esforço, fomos construindo uma visão de mundo. Vale mencionar alguns autores. Karel Kossic, em Dialética do Concreto (1995), nos ajudou muito a perceber a inter-relação profunda entre as coisas. O fato de mexer com tantas dimensões da realidade e, muitas vezes, não perceber com clareza as relações entre uma realidade e outra nos deixava confuso, como se estivéssemos misturando e confundido renda com educação, trabalho, meio ambiente, saúde, gênero, cidadania, ética, ensino, aprendizagem.

“Cada coisa sobre a qual o homem concentra o seu olhar, a sua atenção, a sua ação ou a sua avaliação emerge de um determinado todo que o circunda, todo que o homem percebe como um pano de fundo indeterminado ou como uma conexão imaginária, obscuramente intuída. Como o homem percebe os objetos isolados? Como únicos e isolados? Ele os percebe sempre no horizonte de determinado todo, na maioria das vezes não expresso e não percebido explicitamente. Cada objeto percebido, observado ou elaborado pelo homem é a parte de um todo, e precisamente esse todo não percebido explicitamente é a luz que ilumina e revela o objeto singular, observado em sua singularidade e no seu significado.”

Já não era uma intuição de quem precisava de uma visão de conjunto para entender a realidade desafiante. Era a contribuição do filósofo tcheco sério e respeitado.

Numa outra dimensão, o austríaco, que vive hoje nos Estados Unidos, Fritjof Capra foi um autor que nos ajudou muito no desenvolvimento das nossas ideias. O Ponto de Mutação, A Teia da Vida e A Sabedoria Incomum passaram a ser livros de cabeceira da equipe. Trouxe-nos o ponto de vista da Física, das ciências exatas, da Biologia, da Biociência para justificar ainda mais a nossa relação com a natureza, a nossa abertura em aprender com ela, em tornarmo-nos discípulos dela, em perscrutar sua sabedoria. Nos depoimentos do livro Sabedoria Incomum, ele mostra o quanto o contato com o movimento feminista o ajudou a descobrir a nova relação com a natureza.

Durante a ECO-92, tive a oportunidade de conhecer a indiana Vandana Shiva e seu livro Abrazar la Vida. A engenheira nuclear, formada nos centros tecnológicos de alto nível do Ocidente, faz toda uma análise mostrando como o conhecimento científico do Ocidente foi dominador, machista e perverso para o meio ambiente e o quanto pretendeu ser universal. Quando passamos a estudar os livros de Leonardo Boff, sobretudo Saber Cuidar, encontramos a síntese que intuíamos. Boff interage com o conhecimento científico; com a Filosofia; com a Mitologia; com a Teologia; com o estudo das religiões; com a Física; com a Poesia; com a Biociência; com a História para nos levar a uma visão amorosa do universo; com o cosmo, com os elementos que o compõem, com energia que o integra.

Outros autores foram nos deixando mais à vontade e mais confiantes nas nossas intuições, partindo de ciências diferentes e chegando a conclusões parecidas. Schumacher (1973), em O Negócio é Ser Pequeno, começou a levantar hipóteses para um pensamento econômico diferente. Ignacy Sachs, Amartya Sen, Hazel Henderson, Muhammad Yunus, entre tantos outros, militando por uma economia mais integrada, refletindo sobre ela. Edgar Morin desenvolve a teoria da complexidade. Carlos Julio Jara mostra como essas coisas podem tornar-se realidade no nível local e como os valores intangíveis e espirituais têm a ver com o desenvolvimento. Polan Lacki, da FAO, mostra o que é possível fazer se o desejável ainda não pode ser alcançado.

Esses autores e outros mais foram dando garantia à equipe de que ela estava no caminho certo ao pensar para a Escola Pública Municipal uma Proposta de Apoio ao Desenvolvimento construída com essas bases filosóficas e com uma cosmovisão que requer outro paradigma científico, outra relação com a natureza. Essa visão pode ser construída desde a escola, na comunidade mais distante. Essa riqueza foi resgatada nas Diretrizes Curriculares Operacionais da Educação no Campo, no seu artigo quinto: “As propostas pedagógicas das escolas do campo contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero e etnia”.

1 Serta, Que diferença existe entre teia e cadeia produtivas?, Ideias em Construção, documentos para estudo 01, 2001, disponível em www.serta.org.br.
2 Shiva, Vandana. Abrazar la Vida: mujer, ecología e supervivencia. Montevideo: Instituto del Tercer Mundo, 1991.
3 Ideias em Construção, 2001, docs. 01 e 04, disponíveis no site www.serta.org.br.
4 Jara, Carlos Julio. As dimensões intangíveis do desenvolvimento. IICA, 2002.

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