4.3 A Necessidade de um Projeto Político-Pedagógico
O terceiro princípio, associado aos valores e à teoria do conhecimento, é a necessidade de um Projeto Político-Pedagógico para pensar a Educação Rural. Se a teoria do conhecimento supõe uma ação, uma práxis (ação refletida com uma teoria, e não mera ação), como vimos no capítulo anterior, a ação dirigida ou uma práxis supõe uma intencionalidade, uma direção, um projeto. Sem uma clareza sobre a direção das ações, elas viram ativismo ou permanecem apenas no pontual: locais, micro ou no projeto. Não é isso que a Peads propõe para a Escola, muito pelo contrário. Vamos ver neste capítulo como essas ideias foram delineando-se na construção histórica da Peads.
O Serta tem tido uma preocupação, ao longo de sua história, para que as pequenas ações, intervenções, projetos e programas cheguem, mais cedo ou tarde, a se tornar Políticas Públicas.
Quando nós afirmamos que projeto é uma coisa e política é outra, queremos dizer que projeto é um ponto pequeno e política é um ponto mais amplo; que um está mais no nível micro, outra está no nível macro; que um é mais provisório, que outra é mais definitiva; que um dura algum tempo — enquanto durar o financiamento, um mandato de governo — e que outra dura mais tempo, atravessa mandatos, vira lei e cultura. Queremos dizer que projeto e programa são pontos de partida e que Política é ponto de chegada, que um está mais próximo dos meios, das ferramentas, das técnicas; e outra está mais próxima dos fins, dos objetivos principais, dos resultados mais amplos.1
Diferenciamos projeto e programa de políticas da seguinte forma: projeto e programa são sempre restritos a uma dimensão local, micro, espacial e temporal.
1 Uma contribuição para pensar a visão de futuro do Serta e da Aliança. Ideias em Construção, 05, outubro de 2001.
Dependem de uma ONG, de um movimento social, de um governo ou mandato político. Dependem de um financiamento fornecido por uma agência de cooperação ou por órgão público ou por alguma empresa. Em geral, são muito ligados ao carisma de um ou mais líderes. Quando acaba o financiamento, precisam ser renovados, sempre a duras penas. Quando acaba o mandato político, têm sua continuidade ameaçada. Quando chegam a ser política, passam a ser incorporados aos sistemas de governo, ultrapassam os mandatos políticos, são cobrados pela sociedade organizada e viram leis, decretos, portarias e cultura.
Nas ações do Serta, essa semente sempre esteve presente como inoculante, como indicador. Contribuiu muito para que a proposta educacional incidisse sobre a política educacional pública do sistema municipal de ensino. Se não houvesse esse indicador, possivelmente, o Serta teria, hoje, apenas uma escola, muito bem dirigida, mas seria uma escola particular, sem condição de replicação e de responder ao desafio no tamanho em que ele se apresentou: mudar a cultura das pessoas para alcançar um novo modelo de desenvolvimento.
Em 1992, houve eleições municipais, e o Serta, em assembleia, definiu uma orientação para perguntar aos candidatos quais seriam suas propostas em relação a doze pontos de interesse do desenvolvimento: uso da terra, meio ambiente, água, solo, vegetação, sementes, abastecimento, recursos para o meio rural, educação e saúde rural, comercialização dos produtos locais e infraestrutura. Como, depois de longa pesquisa, não encontramos candidatos com propostas desse tipo, na assembleia de setembro, próxima às eleições, foi decidido que o Serta juntasse as suas e as apresentasse aos candidatos. Daí surgiu o texto Sugestões para um Plano Municipal de Desenvolvimento Rural.2
2 Sugestões para um Plano Municipal de Desenvolvimento Rural, Serta, 1992.
Esse documento deixava clara a necessidade de o município conhecer suas potencialidades e seus limites, os seus recursos humanos, naturais, econômicos, financeiros, etc. Alguns candidatos e leitores reagiram perguntando onde conseguiriam tantos técnicos para estudar o município. Passamos, então, a dizer que o município tinha uma fonte infindável de produção de conhecimentos e que precisava dar oportunidade dessa fonte jorrar. Eram as escolas locais. Estas teriam condição de construir o conhecimento sobre cada comunidade, cada recurso natural (solo, vegetação, água, sementes…), produção, abastecimento, etc. Ninguém melhor do que a escola poderia fazer um levantamento desse. Ninguém teria tanto tempo dedicado para pesquisar numa comunidade como os alunos de uma escola local. Nesse sentido, os alunos com suas educadoras já constituíam uma grande fonte de recurso humano, que não era aproveitada. Só era considerada como despesa, e nunca como recurso. Essa foi uma ideia revolucionária na construção da Peads e marcou as capacitações.
Quando, com as professoras, começávamos a contar os alunos das escolas municipais e estaduais e os professores e multiplicávamos por 4 horas/dia, para saber a quantidade de horas que, no município, eram destinadas à construção do conhecimento, era sempre um impacto. Pelo menos 4 horas, em média, essas pessoas estavam se dedicando ao estudo, sem contar as horas de dever de casa ou preparação de aula e sem contar a jornada ampliada do Peti. Depois de contar as horas do dia, multiplicávamos por 5, para contar as da semana, e, depois, por 4 de novo, para contar as horas do mês. E, por fim, por 9 meses, para saber o total. O resultado era sempre acima de milhões de horas por ano.
Nessa dinâmica, a cada multiplicação, as professoras iam se assustando com a grande quantidade de horas que, no município, estava aplicada ao estudo. Em seguida, perguntávamos quem pagava e mantinha todo esse tempo de estudo. Era outro impacto, porque descobriam que era com o dinheiro dos impostos, portanto, do próprio bolso dos cidadãos. Descobriam que não existia escola gratuita, que alguém estaria pagando as despesas para que se pudesse afirmar como gratuita. Nesse caso, eram os cidadãos que pagavam os impostos.
No grupo, procurávamos as professoras mais antigas e perguntávamos o que, no seu tempo de magistério, a Escola produziu de conhecimento sobre a comunidade local. A resposta sempre foi a mesma: nada. Acrescentávamos ainda: e se fosse uma empresa que pagasse essas horas de capacitação aos seus vendedores, o que iria exigir? E se o capacitador não correspondesse ao investimento, o que se faria? Estávamos demitidas! Era sempre o comum das respostas.
Todas essas dinâmicas são usadas para chamar a atenção para a descoberta que fizemos em 1992. O grande dilema que se punha para as educadoras era: como fazer estudo sobre a realidade se há o currículo para dar conta? E a grande intuição foi que o currículo não seria uma coisa e o conhecimento da realidade seria outra. Passamos a desenvolver metodologias em que o próprio currículo passou a ser o estudo da realidade através das disciplinas.
Porém, para pensar uma tarefa gigantesca, voltava-se sempre para as questões filosóficas, dos fins da Educação. Como redefinir um currículo para a Escola sem ter claro para que é a Escola, a Educação? Que tipo de pessoa, de sociedade, de município queremos formar? Tentávamos traduzir essas perguntas para um nível bem local: que tipo de criança, de adolescente e de jovem queremos formar? Vamos formá-los para viver onde, de quê? Qual o município que se quer hoje e se pretende para o futuro? Quem vai responder a essas perguntas? Como construir um currículo para as escolas municipais da rede de ensino se não sabemos o município que queremos?
Por onde vamos avaliar o ensino, as estratégias, as dinâmicas, os saberes, as habilidades, os conteúdos, se não sabemos para que estamos formando? Quais valores vamos estimular se não sabemos para que e para qual mundo vamos formar? Queremos chegar aonde com os alunos? Apenas que aprendam bem os códigos escritos ou algo mais?
Essas perguntas são permanentes na Educação Popular. Quem se envolvia em movimentos sociais, em pastorais, estava querendo construir algo novo, outra forma de sociedade, imbuída de outros valores. Pretendia um projeto de homem e mulher, de sociedade, de mundo que não fosse o simples reajustar-se ou adaptar-se ao projeto existente, aos valores vigentes.
Carlos Rodrigues Brandão tem um texto, Da Educação Fundamental ao Fundamental na Educação (Pensar a Prática, 1990), no qual mostra que o que identifica a Educação Popular é o fato de ter um projeto de vida, de sociedade. Se não tem, pode então ser educação comunitária, extensão, alfabetização de jovens e adultos e tantas outras formas, mas não Educação Popular. Essa não é a educação com o povo pobre nem para os pobres. Isso muitos grupos fazem, com estratégias e metodologias bem desenvolvidas. A EP é a que tem em seu bojo, em sua filosofia, em seus currículos, em sua finalidade, preparar as pessoas para um projeto de sociedade.
Pensar um projeto de sociedade na década de 90 parecia coisa do passado, uma vez que o projeto mais comum na Educação Popular era o projeto da sociedade socialista. Com a mudança dos países socialistas do leste europeu, muita gente ficou atordoada com a ideia de pensar um projeto de sociedade. Pessoas e instituições queixavam-se da dificuldade de trabalhar com o povo, por conta dessas mudanças, porque o projeto que pregavam tinha sofrido um grande abalo.
Particularmente, no Serta, dizíamos ser mais fácil trabalhar com o povo a partir de agora, porque a criatividade e o pensamento poderiam ser muito mais ampliados para pensar outros modelos, que não os tradicionais socialistas. Quem tivesse ideia, intuição, vontade e compromisso poderia pensar diferente, sem patrulhamento ideológico, sem censura. Poderia, portanto, ser mais criativo, envolver mais sujeitos sociais, mais contribuições teóricas na busca de um projeto diferente.
Passamos a construir a ideia de que pensar um projeto de sociedade não deveria ser privilégio só de quem estava na Educação Popular ou das elites ou dos partidos políticos. Ao nosso ver, foi se firmando a convicção de que cada criança, cada jovem, cada família e comunidade, cada turma escolar, cada associação poderia e deveria pensar o seu projeto de sociedade, construir sua visão de futuro. Como queremos nossa comunidade para os próximos dez, vinte, trinta anos? Como queremos que estejam a saúde, a educação, a produção, o trabalho, o meio ambiente, as águas, a vegetação, o solo e a política no futuro próximo?
Por que deixar essas perguntas só para os políticos, para as elites, as universidades ou os partidos? Por que não construir em cada lugar, em cada território, em cada grupo humano? Por que, então, não envolver a escola nessa tarefa, nesse papel?
No trabalho que o Serta desenvolvia com os produtores rurais, já se trabalhava a ideia do Desenho Predial ou Planejamento da Propriedade, que consistia em identificar o estado atual da propriedade rural em todas as suas dimensões (solo, água, mão de obra familiar, dinheiro, vegetação, instalações, animais, declividade, cercas, distância dos centros consumidores, etc.); tanto o agricultor quanto sua família desenhavam esses componentes em um mapa e apresentava-os ao grupo.
O grupo ia criticar, de acordo com algumas regras, a distribuição deles. O agricultor voltava para fazer outro desenho, dessa vez, do estágio otimizado de sua propriedade e, no terceiro momento, um plano para alcançar esse estágio otimizado. Para facilitar, perguntava-se: como eu quero minha propriedade no próximo inverno? Daqui a cinco anos, quando meus filhos estiverem maiores? Daqui a dez anos, quando eu for me aposentar ou meus filhos saírem de casa?
É um exercício extremamente útil para discutir visão de futuro, segurança alimentar da família, planejamento para o inverno próximo ou épocas mais distantes. Usávamos essa dinâmica, também, para planejar, com uma comunidade, o seu futuro, desenhar cenários. Foi um salto para podermos pensar o município.
Hoje, a clareza sobre essas questões é muito maior do que no início e no meio da década de 90. Durante os anos de 1998 e 1999, as intuições do Serta foram comprovadas com muita evidência, quando, entre os municípios assessorados, dois deles queriam construir um projeto de sociedade. Seus gestores e auxiliares, com a sociedade civil organizada, assumiram o desafio de se perguntar qual município queriam construir para o futuro.
Os gestores desses municípios intuíram que a Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, construída pelo Serta, seria um instrumento eficiente e eficaz para esse objetivo. De fato, vem sendo. A resposta dada por alunos, professoras, pais e outros atores tem sido incomparavelmente mais forte que nos outros municípios, onde essa vontade política não aparece tão explícita.
De 1999 para cá, outros municípios passaram a assumir mais claramente a vontade de pensar um projeto para o município, de construir uma visão de futuro em longo prazo. O Movimento Sindical Rural, através da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura do Brasil – Contag, percebeu também esse viés e articulou a audiência pública com o Conselho Nacional de Educação e os movimentos sociais e as ONGs, para a definição das Diretrizes Operacionais da Educação Rural.
No artigo 4, define que “O projeto institucional das escolas do campo (…) constituir-se-á num espaço de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o mundo do trabalho, bem como para o desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente sustentável”.
No artigo 8, “as parcerias estabelecidas (…) observarão: II- direcionamento das atividades curriculares e pedagógicas para um projeto de desenvolvimento sustentável”.
A prática do Serta e a experiência dos municípios foram confirmadas, reconhecidas e legitimadas pelas Diretrizes Operacionais do Conselho Nacional de Educação.
Em síntese, para pensar educação escolar, currículo, metodologias, avaliação, técnicas, dinâmicas, convém pensar um Projeto Político-Pedagógico. Em outras palavras, precisa pensar nos fins da Educação, no tipo de município, de cidadão, de mundo, de desenvolvimento que se pretende. Portanto, pensar projeto de sociedade é uma tarefa e responsabilidade ao alcance de todas as pessoas.
A construção do futuro exige uma série de conhecimentos, de valores e de habilidades. A Escola é a instituição mais diretamente envolvida com a produção dessas realidades. Mais que as famílias, as igrejas, outras instituições públicas e privadas. Esses conhecimentos e essas habilidades deverão constituir o currículo da Escola atual e não só da Escola do futuro.
Quando se pergunta pelo futuro, fica mais fácil identificar o presente. Para construir esse futuro, a Peads começa com coisas simples, com três censos: o populacional, o agropecuário ou econômico e o ambiental. Cada aluno identifica, na sua família, e, depois, na sua comunidade, todos os dados que deverão compor um censo como esse. Só as primeiras perguntas do Censo Agropecuário, no começo do ano, provocaram as famílias a se situarem de forma diferente diante da Escola e do plantio. Quem vai plantar no próximo inverno? Já tem terra? De que tamanho é a terra? Já está preparada? Já tem semente? O que estão pensando fazer para conseguir terra e semente?3
3 Na home page do Serta encontram-se disponíveis alguns modelos de Fichas Pedagógicas, usadas pelas escolas. www.serta.org.br.
Perguntas desse tipo, levadas para milhares de famílias no espaço de 15 a 21 dias, impactaram os pais. A Escola perguntando por isso! Que novidade é essa? Com uma estranheza pela novidade, os pais e as mães começaram a levar a sério a pergunta e passaram a se preocupar em plantar, em medir a terra, em procurar semente. E quando a escola devolvia o resultado de forma mais organizada, provocava ainda mais a comunidade a uma ação diante dos problemas identificados.
As mais diversas iniciativas foram tomadas pelas comunidades, e os dois municípios, sem tradição de agricultura familiar, plantaram como nunca em sua história, segundo os mais diversos depoimentos de alunos, de professoras e de familiares. Nunca foi tão gostoso e agradável estudar Matemática, fazer cálculo, escrever textos, dividir e assumir responsabilidade, como a partir de um Censo desse tipo, assumido pelos alunos.
Além de identificar a situação da terra, do plantio, os alunos contaram todas as fruteiras; todos os animais de porte grande, médio, pequeno, até gato e cachorro; machos e fêmeas; todas as aves. Nenhuma instituição, nem o IBGE nem outra, conseguiria um levantamento com tanta precisão. Em uma das escolas, no engenho Jundiá, município de Vicência, numa segunda-feira, um aluno procurou a professora para dizer que, na comunidade, não existia somente catorze cabras, como eles haviam contado. Agora, eram dezesseis, porque duas haviam nascido no final da semana em sua casa. Um exemplo da sensibilidade das crianças pelo dado concreto, pelo número e o quanto incorporou da ideia do censo.
Um censo desse revelou a capacidade da escola e dos alunos de conhecerem o seu lugar, a sua comunidade, a olharem para o território com outros olhos. Com uma visão de futuro, com um projeto municipal de desenvolvimento, os educandos vão se sentindo autores, corresponsáveis pela produção de conhecimento. Diagnosticando a potencialidade da comunidade, constroem a sua identidade e a do seu território.
Passam a assumir outra postura diante dos desafios descobertos. Passam a se sentir com possibilidade de intervir na comunidade, a partir de um conhecimento novo e inovador que geraram com seus familiares e educadores. Passam a entender a importância do conhecimento, da Leitura, da Matemática