4.2 A Teoria do Conhecimento
Outro princípio fundamental da Peads, associado aos valores, é a questão da teoria do conhecimento. Quando passei a me preocupar com a Escola Formal, já havia convivido no meio rural, no litoral, na Mata, no Agreste e no Sertão de Pernambuco. Da infância à maturidade, brincando; tomando banho no riacho; caçando; pescando; montando em carro de boi, em cavalo; presente no corte da cana, na moagem dos engenhos de rapadura, nos engenhos bangüês e nas usinas, nas casas de farinha; subindo nos pés de fruta; procurando ninho de guiné dentro do mato; juntando ovos das galinhas; tirando e preparando ração para os animais; ajudando as pessoas a fazerem pamonha, canjica; apanhando feijão, algodão; convivendo na intimidade das famílias, do trabalho, da cultura e das necessidades — “precisão”, como diz o sertanejo.
Ao trabalhar com os agricultores de todas essas regiões, todas essas lembranças inspiravam os meus trabalhos e o do grupo dos técnicos do Serta, jovens que procediam de regiões diferentes. Mesmo discutindo os problemas mais pesados, da repressão militar a secas sucessivas, o clima do trabalho era de alegria, de descontração, nas capacitações, no planejamento, nas avaliações, no monitoramento. Interagiam dinâmicas diversas: canto, poesia, dramatização, leitura de texto em voz alta e em grupo, debate, plenária, pesquisa, orações, exposição, síntese. As pessoas comunicavam-se sem medo de falar errado, sem medo de serem corrigidas ou do educador repreendê-las. Perguntava-se sempre que necessário, e a pergunta era estimulada. O início era sempre enriquecido com dinâmicas de ambientação, para as pessoas integrarem-se, energizarem-se, motivarem-se. O final era rico em compromisso para a ação, para a distribuição de tarefas. As despedidas, carregadas de emoção. As lágrimas eram bem-vindas, ninguém as provocava, mas também não as espantava nem as reprimia, eram espontâneas.
Quando o Serta foi convidado pelas professoras a ajudá-las a fazer a ligação da Escola com a vida, pensamos em contribuir com toda essa riqueza de experiência, de vida, de entusiasmo, de paixão que dominava nossa atividade. Ao chegarmos próximo da escola, ao conhecê-la mais de perto, nos deparamos com um grande contraste em relação ao que vivemos na infância e no trabalho. Não foi difícil perceber que os adultos que trabalhavam conosco eram muito mais motivados para aprender e fazer do que seus filhos nas escolas. Que os espaços eram mais alegres: salas de aula, clubes, igrejas, debaixo de árvores frondosas, em lugares ensombrados, sobre relva. Mesmo em cima de um tamborete duro, havia sempre a liberdade e a iniciativa de procurar o lugar mais adequado, a gosto do grupo.
Na escola, encontramos muita repetição mecânica, uma mesmice nas técnicas, nas dinâmicas, nas formas de ensinar e aprender. Algumas em lugares fechados, quentes, sem luz natural e sem ventilação. Outras apertadas, muitas vezes com sombras gostosas ao lado, que não eram aproveitadas ou, quando aproveitadas, era no recreio. Os técnicos passaram a comparar os mil e um espaços de aprendizagem que existem no meio rural com o espaço das salas de aula das escolas. Percebiam que, nos ambientes da vida, do trabalho, da natureza, havia mais (ou tanto quanto) Matemática, Ciências, Geografia, História, Comunicação, Linguagem, Arte do que nos livros didáticos. Esse contraste levou os técnicos do Serta a defrontarem-se com o desafio da interação entre a sala de aula e o meio local, entre os livros e a produção do conhecimento, entre a Educação Popular Não-formal e a Escola. O resultado desse confronto foi a construção de uma metodologia que contempla todas essas oportunidades de interação, como espaços pedagógicos.
Já lembrei que essas observações nos chegavam primeiro no nível de intuição, de percepção, de vislumbramento, de sensibilidade ou de hipótese. Eram reflexões construídas em longo processo experimental, que corresponde aos anos 1992, 1993, 1994. Quando o professor João Francisco de Souza, do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, conheceu nossas primeiras construções, nos estimulou muito a ir adiante, pois era um campo livre, de pouco estudo teórico e prático e com as bases já construídas. Poderíamos ir longe. Ainda mais encorajado por ele, passamos, no Serta, a um programa de estudo para aprofundar nossas intuições. Depois, em 1997, fiz o curso especial de pós-graduação na Universidade Federal da Paraíba e, em 1998, dei continuidade com o Mestrado em Educação na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Com o retorno à academia e aos estudos sistematizados, foi fácil perceber que o contraste ou o conflito com que nos deparamos, ao nos aproximarmos da Escola Formal, estava sintonizado com as questões filosóficas que perpassaram ao longo de toda a história do pensamento humano. O professor José Neto, da UFPB, em uma aula, construiu uma linha de tempo, dos pré-socráticos até a época atual, mostrando como a preocupação em saber como se conhece a realidade é um fio condutor das preocupações filosóficas do Ocidente. Do realismo de Aristóteles ao idealismo de Platão, todos os filósofos que vieram depois tocaram nessas questões. Como o intelecto apreende o objeto? Consegue apreender realmente ou é apenas uma aproximação? Apreende todo o objeto ou apreende só suas partes? Qual o papel da realidade, do objeto e do sujeito, das sensações, do intelecto, das ideias? É a realidade que forma as ideias ou vice-versa? Qual o papel dos sentidos nessa apreensão? Que garantia tem esse conhecimento? Como provar que é verdadeiro?
Pensadores do Iluminismo francês, do idealismo alemão, do empirismo inglês e do pragmatismo americano marcaram suas diferenças a partir dessas questões. A Filosofia tem tido reforço da Biologia e da Psicologia para pensar essas questões, explicitar em que condições as pessoas aprendem, se já nascem com as ideias ou essas surgem com o desenvolvimento da criança. Todas essas preocupações foram fundamentais para a nossa busca contínua de encontrar formas de as crianças e os jovens do meio rural aprenderem melhor na escola. Porém, havia uma outra preocupação maior do que essa, que era a de responder para que a criança e o jovem do meio rural aprendem? Para que é a Escola e a Educação? Para que eles precisam aprender? Vivíamos permanentemente desafiados a encontrar pistas, caminhos.
Expressávamos mais ou menos assim:
As propriedades rurais com menos de 10 hectares estavam empobrecendo-se 36% por ano, conforme pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, e nós trabalhávamos com agricultores com menos de 10 hectares. Que conhecimentos, que técnicas, que valores, a família precisaria dominar para corrigir esse fatalismo? O que precisaria conhecer de Matemática, de Biologia, de História, de Mercado, de Agronomia para mudar essa situação, para transformar essa propriedade em uma situação desejada? O que seria necessário para mudar os cenários futuros? (Texto das capacitações do Serta.)
Se nossa preocupação era mudar, transformar a realidade atual, intervir na cultura, nos paradigmas de comportamento, como condição para a existência, a sobrevivência e o desenvolvimento das famílias, entendemos que nosso esforço, nossos estudos, nossas pesquisas eram em função da ação, da mudança, da intervenção na realidade. Isso já era o que se vivenciava na Educação Popular. A Ação Católica criou o método ver, julgar e agir, que depois marcou quase todas as pastorais e os movimentos sociais no Brasil. A ação nesse método é o desdobramento lógico, natural, de um diagnóstico, de um julgamento, de uma análise crítica ou de um novo conhecimento. Sem o agir ou a ação, esses outros exercícios intelectuais estariam incompletos.
Quando o Serta foi desafiado a traduzir toda a sua teoria do conhecimento para a prática escolar, não pôde deixar a ação e a intervenção na realidade apenas como uma dinâmica pedagógica, como uma facilitação para a aprendizagem, como um apêndice do ensino. A intervenção na comunidade, no entorno, nas circunstâncias, faz parte da aprendizagem, como faz parte o desenvolvimento pessoal e social dos participantes do processo de formação.
Modificações das circunstâncias hoje fazem parte do desafio de todo jovem do meio rural. As circunstâncias não lhe são favoráveis, não contribuem para o seu desenvolvimento e sua realização. Contribuem, sim, para que migrem, para que busquem realização fora ou para que aceitem o fatalismo da reprodução da pobreza. O futuro precisa de um novo paradigma de realização humana, pessoal e social dos jovens. Se a Escola não contempla isso, continua preparando os jovens para outros mundos que nem sequer existem mais.
Dessa forma, a ação não pode ser entendida apenas como apêndice, como didática, e sim como filosofia, como parte da teoria do conhecimento. Este é construído historicamente, assim é que as disciplinas foram postas nos currículos e selecionadas para tal. Muitos outros conhecimentos deixaram de constar porque, ao longo do tempo, as sociedades, as suas lideranças, escolheram uns e deixaram outros. A capacidade de intervir para mudar a realidade proporcionou à Escola construir muitas interfaces.
É dentro dessa concepção que a Educação Rural está sendo, atualmente, agenda e pauta do movimento sindical rural e de parcela dos movimentos sociais, pois estes entenderam que o conhecimento é, hoje, instrumento privilegiado de intervenção e que é agregado a valores, a ética; e a tarefa da Escola e da Educação Rural deve ser uma construção histórica que contribua para as mudanças, que provoque e estimule a comunidade, além dos alunos, a produzir conhecimentos sobre a realidade local, para mudar essa realidade, para melhor aproveitamento dos recursos disponíveis — naturais, humanos, econômicos, financeiros, técnicos, etc.
Diante de tudo o que foi afirmado, percebe-se que a questão da teoria do conhecimento foi colocada noutra dimensão, subordinada ao seu fim, às necessidades das pessoas que estão em desvantagem e precisando mudar a si mesmas e ao seu entorno ou às necessidades de pessoas desafiadas a encontrar saída e solução para os problemas. Com isso, não queremos negar toda a importância da construção histórica e dos debates das correntes filosóficas. Muito pelo contrário, nos servimos dela para poder encontrar a solução para os problemas da realidade e as necessidades da aprendizagem.
No próximo capítulo, quando for tratado o papel do Projeto Político-Pedagógico da Escola Rural segundo a Peads, todas essas reflexões serão mais explicitadas.