5.2. Contextualização da Peads – Para compreendê-la historicamente

3. Contextualização da Peads do Serta

3.1 Observação Preliminar

A história da Peads identifica-se bastante com a história do seu protagonista, o autor que escreve este texto, e com a do Serta, entidade criada em 1989. Pretender explicar a Peads como raciocínio teórico, desvinculada do seu processo histórico, é o mesmo que pretender entender uma árvore do chão para cima, sem levar em conta toda a riqueza e o papel das raízes, que retiram os nutrientes do solo. Seria, portanto, dissecar uma realidade viva apenas em exercício intelectual, e eu não gostaria de passar essa imagem para o leitor, que poderá saborear o processo.

Por essa mesma razão, não descreverei em terceira pessoa ou impessoalmente, sem sujeitos explícitos. A história da Peads tem sujeitos, atores e autores. Quando a escrita for na primeira pessoa, sou eu quem está escrevendo. Quando for na terceira pessoa ou na primeira pessoa do plural, é o grupo — a equipe do Serta ou as próprias professoras com seus alunos — que está sendo sujeito da ação descrita.

Para explicar essa história de modo mais fácil, vou usar duas imagens. A de uma árvore que cresceu, está dando frutos e sementes, madeira, abrigo aos animais e aos micro-organismos, ar fresco e sombra. Todos esses elementos estão visíveis para quem olha e se aproxima da mesma. Porém, as raízes estão invisíveis, e, para conhecê-las, é preciso ir mais a fundo. Outra imagem pode ser a de uma grande bacia hidrográfica. No momento atual, estamos navegando da foz do rio principal para o interior, para dentro. Estamos na parte mais caudalosa das águas. Queremos saber de onde veio toda essa água. Na origem, ela não tem esse volume todo nem vem de um só lugar: é formada por inúmeras nascentes ou fontes, de lugares diversos. Nascentes essas que foram se juntando a outras e mais outras, formando riachos, depois rios maiores, que, por sua vez, desaguaram no rio principal onde estamos navegando. Algumas fontes estão situadas em lugares bem distantes, bem remotos; outras estão em lugares mais próximos. A função deste capítulo é identificar algumas dessas raízes e fontes e descrever o percurso até a formação dessa árvore e desse rio principal que é a Peads de hoje.

A Peads vem sendo uma construção histórica e coletiva, de resposta a desafios concretos enfrentados pelos seus autores. No início, foi fruto de algumas intuições e inspirações que exigiram tempo para serem verificadas e validadas. Não se apresentavam como certezas e conhecimentos acabados. Não foi resultado da reflexão sobre um ou mais autores teóricos facilmente identificados. Foi mais do esforço de responder a desafios para melhorar a vida dos camponeses, produtores, assalariados, de sua organização e articulação com outros sujeitos sociais. Não nasceu como resultado de professores, de pessoas ligadas à Escola pública ou privada. Nasceu fora dos muros da Escola, da experiência de professores, e dentro do mundo do trabalho, dos problemas e das necessidades identificadas localmente. Não nasceu como resultado de um conhecimento universal, concluído e sistematizado, e sim como resultado de uma construção histórica, de intuições que foram sendo buriladas, aperfeiçoadas, checadas, comparadas.

Sistematizar a experiência a partir de abstração desses elementos históricos, para apresentar a outras pessoas, correria o risco de não transmitir toda a sua riqueza e vida. Por esses motivos, preferi descrever a partir de sua história, reconstruindo e relendo os fatos que a deram origem, contextualizando-a no seu tempo, para ser entendida com toda a sua força, por leitores os mais diversos — educandos, educadores, gestores, produtores, militantes da Educação Formal e Não-formal, jovens e adolescentes, e não só por especialistas da Educação.

3.2 Uma História de Desafios

Uma das fontes identificadas que formou raiz e rio foi o desafio da mudança. O grupo de pessoas que fundou o Serta, em agosto de 1989, foram jovens procedentes do Rio Grande do Norte, do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco que, depois de formados nas Escolas Agrotécnicas de nível médio, vieram estagiar em Pesqueira, região do Agreste do Estado de Pernambuco, no Centro de Capacitação e Acompanhamento aos Projetos Alternativos da Seca – Cecapas. Era uma instituição da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Região Nordeste II, que abrangia os estados do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e Alagoas, criada no ano de 1984. O objetivo desse centro era capacitar sujeitos sociais, sobretudo camponeses, para um novo relacionamento com a terra, o solo, a água e o meio ambiente, para que pudessem produzir de forma mais eficiente e mais equilibrada com os ecossistemas naturais.

A ideia inicial desse Centro de Capacitação foi do Sr. Enes Paulo Crespo, quando então era subsecretário regional da Conferência dos Bispos. Na época, havia um setor de apoio a projetos econômicos na própria Conferência dos Bispos, que inspirava outras instituições públicas e privadas a seguirem o exemplo. A seca prolongada de 1980 a 1983 provocou diversos sujeitos sociais a encontrarem-se numa Conferência Regional em Caucaia, estado do Ceará, em julho de 1983, e a constatação geral era de que os grupos comunitários que recebiam apoio usavam os recursos com as mesmas tecnologias e conhecimentos tradicionais de sempre e voltavam para o mesmo estágio de pobreza. Os apoios financeiros não alcançavam os resultados esperados.

As comunidades apoiadas, mesmo com os avanços ideológicos, políticos, organizativos de suas lideranças, não conseguiam resultados econômicos. As lideranças sabiam muito bem criticar a distribuição das riquezas, mas não conseguiam avançar na produção das mesmas. Os grandes líderes das pastorais, dos sindicatos, dos movimentos sociais no meio rural, em geral tinham as mais fracas propriedades e a produção mais ineficaz. Foi bem identificado um primeiro desafio: como fazer para que as comunidades que recebiam apoio financeiro, organizativo, religioso, social pudessem ter impacto na vida econômica como tinham em outros aspectos?

Os meios, as estratégias, os conhecimentos desenvolvidos pelas lideranças impactavam muito os capitais humano e social. As pessoas evoluíam muito, aprendiam a lutar pelos seus direitos, a se organizar para debater os problemas, para conhecer as leis e a Bíblia, para reivindicar serviços públicos, para conquistar espaços políticos, mas a produção e o uso de tecnologias mais apropriadas não avançavam.

Em 1983, o Senhor Paulo Crespo foi convidado para fazer um curso em Santiago do Chile, no Centro de Educación y Tecnologia – CET, onde aprendeu princípios e práticas de uma agricultura mais bem relacionada com o meio ambiente e novos paradigmas para pensar o desenvolvimento local. Passou a conversar com as equipes diocesanas sobre essas alternativas para responder ao desafio identificado. Daí nasceu o Cecapas.

Esse Centro organizava cursos de agricultura orgânica, horticultura, plantas medicinais, nutrição, melhoramento genético do rebanho, piscicultura, apicultura e outros. Os cursos tinham duração de cinco dias, em regime de imersão. As pessoas chegavam no domingo e, na sexta-feira, voltavam para suas casas. Na avaliação final, o entusiasmo era tanto que dava a sensação de que, na segunda-feira seguinte, já estariam refazendo a administração de suas propriedades.

Além dos cursos internos, a equipe viajava e dava cursos em outros estados e locais. No Centro, havia muitas unidades demonstrativas, que ilustravam os resultados de técnicas simples, baratas, ao alcance dos produtores, e a dinâmica era de aprender fazendo, com predominância de aulas práticas sobre as teóricas. Os instrutores encantavam-se com os depoimentos e as avaliações finais. Os envolvidos nesse processo imaginavam ter encontrado a resposta ao desafio. Agora, pensavam eles, os agricultores vão produzir melhor, porque os conhecimentos e as tecnologias que desconheciam já lhes eram conhecidos.

De fato, num primeiro momento, chegavam até o Centro muitos depoimentos de pessoas que aplicavam os novos conhecimentos e técnicas e obtinham resultados gratificantes. Nesse Centro, eu ocupava a função de Coordenador Pedagógico e assumia sempre uma posição questionadora diante desses resultados, que incomodava a equipe de instrutores técnicos. Não demorou a aparecerem informações frustrantes de que os que faziam o curso não conseguiam aplicar os conhecimentos técnicos, e os que conseguiam tinham grandes dificuldades de continuar.

A equipe passou a investigar mais a fundo essas reações, a visitar in locu as propriedades, a fazer encontro para reciclar os participantes e a ouvir as razões e os motivos apresentados pelas pessoas. No centro dos motivos, estava uma questão cultural e antropológica…

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