4.2.4. Histórico da Proposta de Educação do Campo

    1. HISTÓRICO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

 

É um texto de 1995, que se refere à História da Proposta de
Educação do Campo construída pelo Serta. Antecede até
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.

1.1.  O SINAL DE ALERTA

Técnicos do Serta em 1991 desenvolviam junto aos jovens das comunidades de seis municípios do Agreste Setentrional de Pernambuco um levantamento sobre a propriedade dos pais. Os técnicos se surpreenderam com uma constante observada, sobretudo junto aos jovens que estudavam. Em geral, não sabiam dizer o tamanho da propriedade de seus pais. Procuraram observar este dado junto às professoras, filhas ou esposas de agricultores. A mesma coisa aconteceu, elas não sabiam deste dado tão elementar. O Serta trabalhava com o planejamento da propriedade, coisa que exigia uma identificação da propriedade, seu tamanho, seus recursos, suas condições de solo e água, suas potencialidades e carências.

1.2. A PREOCUPAÇÃO PELO TEMA

A partir desta observação, os técnicos passaram a conversar mais sobre a escola, o que se estudava, o que se ensinava, os livros, os cadernos, os deveres.  A angústia inicial foi aumentando na medida em que iam tomando conhecimento desta realidade. Os mesmos não podiam acreditar que a distância entre a agricultura, a realidade rural, as necessidades dos produtores, poderia ser tão grande. Daí surgiu a necessidade de uma pesquisa mais profunda. O Serta convidou 55 jovens estudantes de 4 municípios para um encontro de 3 dias, realizado no município de Orobó, de 3 a 5 de abril de 1992.  O tema foi a Agricultura e a Escola.  Participaram jovens dos cursos de formação de professores, magistério, contabilidade, científico, e de várias séries do ensino Fundamental.

1.3.  UMA TRAGÉDIA A CONSTATAÇÃO

De diversas formas foi perguntado, em grupo, individualmente, em plenária, pela relação da aprendizagem da escola com a vida do meio rural. Por incrível que pareça, não apareceram exemplos, lembrança, referência, relação, textos, da educação da escola com a realidade rural. Foi estudado ainda um fato mais grave.  Professoras da Escola Intermediária do primeiro grau do distrito de Mandacaru, município de Gravatá, estimuladas pela atuação do Serta nas comunidades, quiseram realizar um treinamento na escola, sobre uma horta orgânica de dimensão familiar. Alguns pais, sabendo disso, procuraram a direção da escola para reclamar. O que diziam eles a direção da escola?

1.4. ESCOLA ERA PARA ENSINAR A LER E ESCREVER.

“Agricultura, meus filhos aprendem comigo em casa, botei eles na escola para aprender coisa melhor!”.  Muita reflexão foi feita neste encontro a partir dos depoimentos dos jovens e de fatos parecidos com este.  Foi observado que a questão não era só da escola, das professoras, dos livros. Era mais séria ainda!  Estava arraigada na cultura, no pensamento dos pais, das mães, da sociedade e dos educadores. Educação parecia antagônica com produção, com realidade rural, e sinônima de cidade, de meio urbano. Estudar era preparar-se para vir para a cidade, a procura de um emprego e vida melhor, pois a agricultura não promovia, nem melhorava ninguém.

1.5. PODERIA SER DIFERENTE?

Essa era a grande interrogação no debate sobre os encaminhamentos do encontro. Entre os participantes, nove eram professoras municipais rurais, substitutas.  Sugeriram que o Serta se empenhasse para uma capacitação que levasse em conta a vida, a produção, o meio ambiente e a realidade rural. Desde este encontro, a questão da educação passou a ocupar um espaço privilegiado dentro do Serta, sempre ligada com a produção, a cultura e o ensino.

1.6. PRIMEIRA INSPIRAÇÃO: A REFERÊNCIA AO CALENDÁRIO AGRÍCOLA.

Chegar à escola molhado, sujo de lama, era a mesma coisa que chegar suado com o sol escaldante! Os temas, as dinâmicas das aulas eram as mesmas. No sertão, agreste, mata e litoral, na capital, no interior, na cidade e no campo era como se o mundo e o calendário fossem o mesmo e significassem a mesma coisa.  Faltar à escola por que no inverno, tinha que plantar para aproveitar as poucas chuvas, nunca foi tema de texto. Chegar atrasado no período da seca, porque antes de ir à escola, tinha que buscar água e ração para os animais, não representava nada para o português, a matemática, a ciência e os estudos sociais que se ensinava na escola. 

Foi fácil perceber uma coincidência no Agreste Setentrional de Pernambuco com o período das Unidades ou Bimestres, usado comumente nas escolas.  O final do verão, meses de fevereiro e março, coincidindo com a primeira unidade, o início do inverno, meses de abril e maio, com a segunda unidade. O período de final de inverno com os meses de agosto e setembro, o mesmo da terceira unidade. Por fim, o período das colheitas e início do verão, outubro e novembro, com a quarta.

O desafio era como considerar o calendário na educação escolar. Como estudar a realidade de cada período deste? Como identificar na aprendizagem as implicações dessas estações na vida familiar? Na distribuição dos serviços, das tarefas, do tempo em casa, o comportamento dos animais, das plantas, da natureza? Enfim, como ligar a escola com a vida que o aluno tem em sua família, em seu meio, em suas atividades produtivas, recreativas, sociais, culturais?

1.7. A NECESSIDADE DA PESQUISA

Na medida em que se conversava sobre estas coisas, abria-se um leque de possibilidades, de dinâmicas que poderiam ser usadas. Por outro lado, o famoso dever ou tarefa de casa, instrumento ambíguo e polêmico nas concepções dos alunos, familiares e professores, surgia como um grande recurso pedagógico para a integração desses três sujeitos da educação: o aluno, a professora, e a família.  O dever de casa foi associado à pesquisa da realidade do aluno. Em cada unidade a professora poderia sugerir para os alunos fazer pesquisa para identificar a realidade, a natureza, o trabalho, o solo, as plantas, as condições da propriedade de seus familiares ou da comunidade.

Por exemplo, no período de verão, as famílias precisam preparar seus terrenos para plantio, providenciar sementes, as águas e os pastos tornam-se mais raros, e precisam gastar mais tempo nisso. Em outros lugares, os pais e irmãos mais velhos saem para procurar serviço no corte da cana na zona da mata, ou na construção civil.  Identificar estas diversas realidades poderia ser apaixonantes temas de pesquisa dos alunos junto aos seus familiares.  Saber quem já preparou o terreno para plantar, que tamanho tem este terreno, quem já tem semente, quem não tem. Quem tem terra, quem não tem.

1.8.  O QUE E COMO FAZER COM AS PESQUISAS?

Na medida em que o aluno traz o resultado da pesquisa para a classe, a professora tem um rico material para desenvolver suas aulas de português, matemática, ciências e estudos sociais. Ela pode transformar tudo em conteúdos de português, em textos, frases, palavras geradoras, teatro, mímica, canções. Ligar com matemática, usando unidades de medidas de superfície, de volume, operações matemáticas, maior, menor. Desenvolve de acordo com o nível dos alunos, da alfabetização a quarta série. A interdisciplinaridade passa a ser elemento chave do ensino.

Muitas professoras não têm conhecimentos suficientes da área rural, e ensinam nela. Para desdobrar as pesquisas, precisam aprender com os alunos, ou seus pais, algumas vezes analfabetos. E aí, começa uma nova relação entre professor, aluno e familiares. A professora passa em alguns momentos a ser aprendiz de seus alunos e vice-versa. A atitude interior de sabichona diante da comunidade vai mudando, ela troca conhecimentos, junto com os alunos e familiares, produzem conhecimentos, e não só repassam. Ela vai descobrindo coisas específicas da zona rural, dos seus alunos, identificando as diferenças e semelhanças com o mundo urbano.

A criatividade passa a ser ordem do dia. A professora passa a sair com seus alunos, a entrevistar os produtores, os criadores, as pessoas mais velhas da comunidade, as lideranças.  Os conteúdos das disciplinas passam sempre a ter referências concretas, situações vividas dos alunos. A motivação dos alunos aumenta, eles passam a participar mais, se interessar, cobrar mais da professora. A troca e produção de conhecimentos produzem valores e atitudes novas. A professora começa a se interessar pela comunidade e vice-versa. A comunidade faz reunião sobre a escola.

  • DA IDÉIA PARA A AÇÃO

Acreditar na possibilidade de uma escola trabalhar assim foi o grande desafio. Aceitar técnicas, dinâmicas, pesquisa, até que não foi difícil. As professoras aceitam com facilidade. Porém, estruturar uma metodologia com princípios, diretrizes, etapas de ação e rever atitudes, cultura e valores produz muita resistência. As maiores são sempre culturais. Inicialmente, as professoras colocavam todas as dificuldades nos familiares.  Diziam que eles não aceitariam seus filhos levando para a escola o cotidiano deles, que já é deprimente, sem futuro. Por outro lado, as crianças já passam o dia lidando com esta realidade, na escola gostariam de ver coisas diferentes.  Nos treinamentos iniciais de capacitação a resistência era muito forte, nos encontros de acompanhamento, na medida em que as professoras traziam os resultados de suas tentativas, iam se surpreendendo com o nível de aceitação das crianças e dos pais. A experiência de uma ia ajudando a de outra. Hoje, julho de 1995, não se comenta mais sobre uma ideia, uma sugestão ou um sonho. Está se refletindo agora em cima de uma realidade de três municípios em Pernambuco, acompanhados pelo Serta, e 3 na Bahia acompanhados pelo MOC de Feira de Santana e um grupo de professores da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana).

 

 

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