INTEGRAÇÃO DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE
NO PROCESSO EDUCATIVO
Reflexão apresentada pelo SERTA – Serviço de Tecnologia Alternativa – no
Encontro promovido pelo CERIS e MEMISA em parceria com o SERTA sobre
Saúde em Camaragibe – PE, nos dias 2 e 3 de dezembro de 1996
21.1. INTRODUÇÃO
O SERTA está devendo uma explicação mais detalhada sobre o caminho percorrido para chegar ao trabalho com Agentes Comunitários de Saúde e Políticas Públicas Municipais. Isso porque na sua origem, seu corpo técnico era formado por 5 técnicos em agropecuária de nível médio, uma agrônoma e um educador do campo não formal da educação. Atualmente o SERTA se vê envolvido com uma PROPOSTA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO, com atuação na rede pública municipal formal de ensino e com uma Proposta de Saúde Rural (PSR). Quando falamos em Rural e em Municipal, não é porque as propostas não sirvam para a área urbana ou para o nível estadual, mas por que a área de atuação do SERTA ainda é predominantemente rural.
Como entender que técnicos de um campo bem específico do conhecimento e da ação, como é agropecuária, chegaram ao campo da educação, da saúde? Que percurso foi este? Qual foi o fio condutor? Socializar esta experiência, sistematizar esta trajetória é o objetivo desta reflexão. Não vai ser possível detalhar as estradas, as paradas, os pontos de apoio, mas vai ser possível dar uma olhada no mapa deste caminho.
Refazer este percurso ao menos no mapa é refletir sobre a ação de sujeitos, atores e autores sociais importantes dentro do município: Produtores e produtoras rurais nas suas diversas camadas, professoras da rede municipal de ensino e agentes comunitários de saúde. Nosso fio condutor vai ser identificar alguns pontos comuns na ação desses sujeitos sociais individuais e coletivos, que possam contribuir com o avanço do trabalho de saúde dos participantes do encontro.
21.2. O CONTATO COM O CONHECIMENTO SOCIAL DOS AGRICULTORES
Inicialmente (1989/90), o trabalho do SERTA consistia em capacitar produtores rurais para responder aos desafios que os impactos das mudanças da época vinham produzindo na produção camponesa. Estes eram tão rápidos, violentos e exigentes, que o saber do agricultor, adquirido pela cultura, pela vivência familiar e no trabalho não era suficiente. Esse conhecimento, por sua natureza, é fragmentado, cotidiano, imediato, resultado da prática. As mudanças estavam exigindo outra ordem de conhecimento para enriquecer a este, precisava de mais informação, de mais tecnologia, de mais articulação, de mais experimentos e pesquisas. A questão ecológica, o meio ambiente era um dos aspectos dentre outros, que o SERTA entendia como fundamental a ser considerado.
Por outro lado, o conhecimento mais técnico, mais acadêmico que os técnicos da extensão rural repassavam aos agricultores, também se apresentava insuficiente e cheio de lacunas para responder aos desafios concretos dos agricultores e agricultoras. A equipe técnica do SERTA tentou inovar não só repassando conhecimento, não só fazendo treinamento, mas produzindo conhecimento com os produtores. Um conhecimento diferente, inovador, que pudesse elevar o patamar do conhecimento tradicional e do conhecimento técnico disponível, para outro nível, capaz de interferir na realidade, de interagir com as mudanças e de melhorar as condições de vida.
A resistência cultural aos conhecimentos novos, às experiências de recuperação do solo, de equilíbrio do meio ambiente era muito forte. Mesmo observando os resultados positivos na lavoura, no terreno, não era assim que tinham aprendido com seus pais. O que aprenderam foi queimar o mato, plantar de ladeira a baixo, tirar da natureza o que ela podia dar. A equipe técnica propunha outra forma de plantar. Esta resistência deixava a equipe técnica impotente diante do desafio, sobretudo porque as mudanças continuavam a acontecer e a ter impactos violentos sobre a produção.
Por outro lado, os jovens do meio rural que estudavam, chegavam às vezes ao ensino médio, até ao curso universitário, mas não traziam da escola conhecimento, experiência e prática, que pudessem contribuir para responder aos desafios que seus pais encontravam. Muito pelo contrário, quanto mais estudavam, mais distante ficavam da realidade vivida e trabalhada pelos seus pais, como se o estudo fosse totalmente incapaz, ineficiente para responder às necessidades do trabalho. O resultado era a distância cada vez maior entre o conhecimento social adquirido na família e o conhecimento escolar. Não se interagiam, não se enriqueciam, não se relacionavam. Nem um conhecimento com outro, nem um conhecimento com a prática do outro.
A tendência era aumentar esta distância, era os pais se sentirem cada vez mais no passado, com uma herança cultural incapaz para transformar a realidade, agir sobre ela e interagir com ela e os filhos, com um conhecimento adquirido na escola, mas também insuficiente e incapaz diante da realidade, tanto quanto o tradicional e social herdado da cultura.
21.3. A DESCOBERTA DAS PROFESSORAS MUNICIPAIS
Começamos a perceber que este abismo entre as duas formas de conhecimento e a ineficiência dos mesmos para transformar a realidade, ia deixando ambas as gerações cada vez mais atrás do desenvolvimento, cada vez mais despreparadas para fazer frente às mudanças, que por sua vez, eram cada vez mais radicais. Para verificar mais esta hipótese, foi realizado um encontro com 55 jovens na quase totalidade de estudantes do meio rural da primeira série à universidade para estudar com eles a relação entre a escola e a agricultura. A hipótese foi plenamente confirmada. Nenhum se lembrava de uma só referência na escola à vida da produção rural. Depois em vários momentos, outros municípios e estados, procuramos verificar com mais garantia esta conclusão: era generalizada: Pernambuco, Paraíba e Alagoas.
Com a experiência acumulada, passamos a procurar contatos com as pessoas do mundo formal da educação. Nossa preocupação foi se delineando para buscar um conhecimento na escola, que não fosse só um repasse, mas que fosse uma produção, que levasse em conta o conhecimento já adquirido e produzido socialmente na cultura, na vivência com os familiares e o conhecimento técnico, escolar, científico, junto com as habilidades da escrita, da leitura, da oralidade, dos cálculos. Era um esforço para que um conhecimento fizesse valorizar o outro.
Começamos a conhecer professoras e supervisoras municipais, servidoras públicas para discutir estas questões. Até então um mundo novo e desconhecido para o SERTA. Alguns líderes mais radicais começaram a no olhar atravessado: O SERTA parece está bandeando para a prefeitura! Foi e tem sido uma experiência maravilhosa e enriquecedora o contato com esse pessoal.
Desenvolvemos uma Proposta de Educação do Campo, onde o instrumento fundamental usado nela é a pesquisa da realidade familiar, comunitária e do município, conforme o nível da classe. O dever de casa transformou-se em busca dos dados. Os estudantes pesquisam a realidade local, sempre com a ajuda da própria família, pai, mãe, irmão mais velho. Esses dados vão para o caderno e os alunos levam para a classe. Assim, os estudantes levam para a escola o conhecimento que seus pais têm do solo, da vegetação, da natureza, do trabalho, dos instrumentos de serviço, das estações do ano, da produção, do beneficiamento, da comercialização, etc. Na classe, a professora analisa esses dados, conhecimento já produzido pelos seus alunos, e transforma em conhecimentos de português, matemática, estudos sociais, ciências. Assim, o nível de conhecimento trazido pelos alunos ganha outro patamar, transforma-se em debates, em textos, em leitura, em escrita, em cálculos precisos.
Numa terceira etapa, a professora vai discutir a ação que se pode ter a partir dos conhecimentos novos que foram adquiridos pelos alunos com ela, que debates, as crianças vão trazer de volta para seus pais, que interação vão fazer com a realidade, com o conhecimento e assim, continuadamente.
Para isso, as professoras sentiram necessidade de capacitação não só pedagógica, mas técnica, e passamos a observar fenômenos curiosos como o técnico discutindo com as professoras se perguntar: mas o que é que eu sou agora? Isso é tarefa de técnico? A professora discutindo em Surubim o resultado do plantio de milho, em Glória do Goitá a modernização das casas de farinha, e as de Chã Grande discutindo os preços do Chuchu na CEASA e se perguntando: mas o que é que eu sou agora?
Qual foi o elo que ligou tão intimamente a experiência da professora, da área de ciências humanas, com o técnico da área de ciências exatas? Esse elo foi a vontade de agir sobre a realidade levando em conta o papel do conhecimento apropriado e produzido de uma maneira inovadora. Foi a tentativa de elevar o patamar, o nível de informação e formação, de consumo e produção de conhecimentos em vista da ação sobre a realidade. Conhecimento questionador, que refaz, reconstrói o que existe, e o potencializa para uma intervenção na realidade.
21.4. A DESCOBERTA DOS AGENTES DE SAÚDE
Nas comunidades que o SERTA tinha presença, já existiam várias atividades no campo da saúde, lideranças capacitadas, ligadas às CEBs da Diocese de Nazaré, a pastoral da saúde e ao próprio SERTA. Trabalhava-se e se trabalha remédios caseiros, argiloterapia, nutrição alternativa, plantas medicinais etc. O trabalho com as professoras nos levou também a discutir a mesma metodologia para a educação de adultos, a ideia era alfabetizar mulheres, por exemplo, ao mesmo tempo em que elas pesquisariam as doenças, as plantas, os conhecimentos e práticas da comunidade, a higiene, a saúde etc.
A partir deste momento, fomos conhecendo mais as agentes comunitárias de saúde, seus instrumentos de trabalho, suas fichas, seus levantamentos, suas formas de capacitação. Para o trabalho que estávamos fazendo com os produtores e professoras, foi como achar um tesouro, um mundo de aliados, com instrumentos ótimos, com possibilidades enormes e com legitimidade. Estavam sendo pagos para fazer uma coisa que o SERTA tentava só na garra.
Mas ao mesmo tempo, encontramos um grande limite na sua capacidade de ação, que restringia os efeitos de seus instrumentos. Por um lado, uma produção de conhecimento detalhado de fazer inveja a qualquer órgão de pesquisa, fichas e dados precisos sobre uma quantidade grande de problemas: condições de vida, condições de habitação, alimentação, emprego, renda, mortalidade infantil, aleitamento materno, gestantes e pré-natal, óbitos, nascimentos, índices de doenças etc.
Víamos toda esta riqueza ir embora das mãos do agente e da comunidade para uma secretaria de saúde central no município, no estado e na união. A comunidade gerou os dados, os conhecimentos, o agente se apropriou desse conhecimento e passou para outras mãos, perdendo o domínio e a direção dos mesmos, sem devolver para a comunidade que o ajudou a produzir. Esse amontoado de dados quantitativos que poderiam voltar à comunidade, ser discutido, aprofundado, elevado o patamar e o nível para uma posição mais elevada e servir de orientação para a ação coletiva da comunidade, ficou só na mão do agente, orientando apenas o seu trabalho. Assim, virou um conhecimento tão frágil e fragmentado, ineficiente e ineficaz quanto o conhecimento social dos produtores herdado na tradição e o conhecimento escolar que não levou em conta o desafio da realidade.
Neste período, em Bom Jardim, Lael Gomes, coordenador geral do SERTA começou a direcionar o contato que ele tinha com as Agentes de Saúde que faziam parte da comunidade e conheceu a supervisora Municipal. Passou a conversar sobre estas ideias, a interação das Agentes com a comunidade, o uso do conhecimento que a comunidade já tinha de elementos referentes à saúde.
21.5. CONCLUINDO
Em síntese, temos hoje uma agente comunitária de saúde que é alfabetizadora de jovens e adultos e várias agentes mobilizando a comunidade, devolvendo suas pesquisas suas fichas. Interagindo conhecimentos com as comunidades, a partir dos conhecimentos que estas já possuíam, está acontecendo no Agreste Meridional, em algumas cidades do Agreste Setentrional, como Riacho das Almas, e é uma potencialidade amplíssima a disposição de quem tiver garra e interesse em desenvolver.
E assim, Agentes Comunitários de Saúde, Professoras Municipais, Técnicos e Produtores estão podendo vivenciar uma das formas mais ricas de serem educadores para a mudança, num tempo de mudança. Contribuindo com conhecimento inovador, devolvendo para os produtores, os geradores e informantes deste conhecimento, que numa ação mais coletiva, por sua vez, desdobram em novos conhecimentos, com doses mais seguras, mais científicas, mais rigorosas e assim, possibilitam uma intervenção maior na realidade por parte dos diversos sujeitos sociais.
Técnicos, Professoras, Agentes de Saúde encontram a população em um patamar, em um nível de conhecimento quando pesquisam, quando investigam, quando anotam esses conhecimentos. É o nível real de conhecimentos, o conhecimento adquirido até o momento pela população, um conhecimento mais prático. Quando devolvem, quando aprofundam, quando analisam com a própria comunidade, elevam este nível real de conhecimento, para o nível proximal (Vygotsky) de conhecimento, isto é, o nível que os educandos alcançam com a contribuição de seus educadores, um conhecimento mais refletido com a teoria e a prática.
Mais que isso, com esses conhecimentos neste nível, os técnicos, professores e agentes oferecem a sua grande contribuição para a construção das Políticas Públicas. Estas só serão eficazes, se baseadas em conhecimentos da realidade, construídos dentro de um processo de participação coletiva. Não podem ser construídas em cima só dos conhecimentos tradicionais, das opiniões, dos achismos, do senso comum, como também, não só em cima do conhecimento escolar, como também não só em cima do conhecimento meramente científico. Para ser pública, participativa, precisa da experiência da produção de conhecimento e produção coletiva. E isso não se faz sem muito estudo, muito debate, muita mobilização. Discutir Políticas Públicas é iniciar um mutirão de produção de conhecimentos.
Seria necessário que os interessados em construir Políticas Públicas, pensar Desenvolvimento, criar Conselhos Municipais, Mobilizar a Sociedade Civil, construir parcerias, descobrissem e conhecessem o potencial que existe nas professoras, nos Agentes de Saúde, nos técnicos e nos produtores rurais.