4.2.1. Primeiros Textos sobre os Princípios da Educação do Campo

 

ALGUNS PRINCÍPIOS DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

 Texto escrito em 1994. Não revisamos o texto, pois trata-se de um
documento histórico, foram os primeiros esforços do autor para
colocar no papel princípios para a Educação do Campo.

 

20.1. O LOCAL, O DISPONÍVEL E O REAL

O Serta chegou a esta proposta depois de 6 anos de tentativa de capacitar agricultores para a compreensão e prática de uma agricultura mais natural e orgânica. Isso sem contar os 20 anos anteriores de convivência direta com agricultores em programas comunitários, sindicais, associativos e religiosos do seu idealizador principal do litoral ao sertão de Pernambuco.

Durante este tempo houve uma busca contínua para se valorizar as coisas, as ideias, os recursos locais e disponíveis na comunidade. Uma análise das escolas rurais dos municípios mostra que elas são carentes, pobres em material pedagógico, em espaço, em recurso, em salário para as professoras.

Porém, um olhar mais profundo com outros enfoques mostra que ela é rodeada de recursos, de possibilidades, de muito material vivo, dinâmico e pedagógico, embora não seja o que convencionalmente se considera material pedagógico.

A realidade de seus alunos é também enriquecedora para a aprendizagem. Quando a criança vem para a escola rural, ela já ajuda a família a plantar, a colher, a dar água e comida aos animais, a botar água em casa. Já conhece e manipula alguns instrumentos de trabalho. Em alguns lugares já dirige um carro de boi, um burro ou cavalo.

Além da experiência do aluno, há a da família que é muito próxima do filho, diferente da escola urbana, onde o pai trabalha no lugar que as vezes o filho não conhece, não tem ideia dos instrumentos, dos resultados e das dificuldades.

O local e o disponível não são importantes só do ponto de vista material. O tempo e o espaço são categorias importantes que a criança adquire a partir do seu mundo real. Pesquisando bem a realidade de sua casa, do seu sítio, da sua comunidade, a criança desenvolve a ideia de extensão e associação a outras casas e lugares, vai do particular ao geral, do concreto ao abstrato, do local ao universal.

Pesquisando os costumes dos mais antigos do lugar e recuperando a história das matas, das caças, dos rios, das festas e dos costumes locais, os alunos desenvolvem a ideia de tempo.

A questão prática também é importante. Vimos não ter sentido levar uma proposta de educação rural para os prefeitos recusarem com a desculpa que é cara, inviável, que os cofres da prefeitura não suportam etc. Muitos rejeitam esta simplesmente por que exige capacitação.

O local, o disponível e o barato fazem também parte da nossa concepção de desenvolvimento sustentável. Para nós não adiantaria implantar uma proposta pedagógica que dependeria de um recurso ou projeto extra, que depois de encerrado, inviabilizaria a sua execução.

Esta proposta é mais barata do que qualquer outra convencional, exatamente porque ela parte do que se tem e do que se vive. Se uma escola tem poucos recursos, esta mesma situação se torna um instrumento de aprendizagem, para melhorar com a comunidade, a professora, os alunos e o município, a situação da escola.

20.2. A APRENDIZAGEM DO ALUNO, DA PROFESSORA E DA FAMÍLIA

Nós acreditamos que quando o aluno vai pesquisar a realidade vivida e traz de volta para a classe, e a professora examina, amplia, devolve e desdobra com análise, ela está aumentando seus conhecimentos e sua vivência. Sobretudo se ela não tem muito contato com o meio rural. Hoje está acontecendo com a exigência de concurso, que muitas professoras da cidade se tornam professoras na área rural.

Só essa atitude interior que ela precisa aprender, que ela não sabe tudo, que existe uma realidade que seus alunos vivem e que ela ainda conhece pouco, coloca a professora numa atitude de busca e abertura para a realidade que a escola convencional não favorece. Ela parte do princípio que vai aprender com seus alunos, portanto, que vai aberta, que seus alunos têm vivência, tem experiência, tem conhecimentos.

Como o ensino se dará muito em contato com os familiares, ela também, vai se abrir para aprender com os pais e irmãos dos seus alunos. Ela vai encontrar nas famílias parceiros e colaboradores da escola, o que é muito difícil na relação convencional, onde as famílias se desligam tanto da educação, quanto do prédio físico.

A comunidade passa a ver na professora uma agente da aprendizagem, uma formadora da opinião pública do local. A família vai apreender também, a escola vai desenvolver muitas atividades com os pais, vai vê-los no roçado, na limpa, na colheita, no beneficiamento dos produtos, vai visitar na casa de farinha, nas instalações da propriedade.                                                                                                                                                             

Por outro lado, os pais vão à sala de aula em alguns momentos, vão ser valorizados pela professora, vão ensinar algo que ela não sabe, vão ficar em alguns momentos no lugar da professora. Tudo isso tem dimensões psicológicas e pedagógicas profundas na atitude interior de cada um e na visão do papel da escola na vida das pessoas e da comunidade.

Nesta proposta, portanto, três são os professores, três são os alunos: a professora, o aluno e a família que se interagem de forma dinâmica e permanente.

20.3. O LUGAR DO PRAZER E DA VIDA

Partilhamos da ideia de que com prazer aprende-se melhor. Esta sensação os seres humanos e até os animais têm. A aprendizagem que entra pelos ouvidos, pelos olhos, pelo cheiro, pelo tato, pelas emoções, pelo contato direto chega de forma mais fácil, mais gostosa e agradável. Será capaz de alimentar e ser alimentada pela pesquisa e análise, de ser ampliada e estendida a outros ramos ou dimensões do conhecimento.

Nos meios rurais, onde existe sombras gostosas, as crianças brincam debaixo delas e não dentro de casa. O ar é mais gostoso, o espaço é mais livre, podem sujar, desarrumar, sem a reclamação dos mais velhos. O espaço é delas.

Nossa proposta pretende estimular esta observação, daí uma importância muito grande para atividades extraclasse, em grupos, em equipe ou com a classe. Na escola tradicional, se uma professora sai com seus alunos no horário da aula, os pais perguntam: está dando um passeio hoje? Só que no tom desta pergunta, é como se dissesse assim, a professora hoje vai passear com os meninos, não vai dar aula não, nem ensinar.

Na proposta em questão, isso muda. O passeio, a caminhada, a pesquisa, as entrevistas fora da escola serão atividades normais, comuns como as de dentro da classe. Mas devem ser cheias de prazer, de satisfação, de descontração. Já escutamos testemunhos de professoras que em atividades desta natureza, as crianças e ela esqueceram o relógio e sentiram uma coisa tão gostosa terminar logo.

Sem prazer, sem gostosura, sem alegria, uma proposta desta se tornaria apenas mais uma entre tantas outras propostas pedagógicas. Esvaziaria o conteúdo da mesma.

20.4. O PAPEL DO CALENDÁRIO AGRÍCOLA

Nossa proposta prioriza o calendário agrícola por várias razões. Apesar de no Nordeste não existir as 4 estações do ano, as duas principais, inverno e verão mudam muito a realidade exterior. Precisamos saber também que o calendário mexe com a alma e a vida interior das pessoas, que também fazem parte da natureza.

Queremos dizer com isso, que como nas praias, o verão de sol, anima as pessoas, nos Agrestes e Sertões, o verão forte desanima as pessoas, e algumas espécies animais e vegetais. Outras espécies gostam mais do verão. Quando a chuva chega, recobra os ânimos, revigora as esperanças, a terra muda, os animais sentem, a vegetação se restabelece.

Os hábitos em casa também mudam. A distribuição das tarefas na família, os serviços mudam. Este dinamismo existe na vida rural e nas famílias e para a escola tradicional não diz nada. Apenas apresenta problemas por que os alunos faltam muito em algumas épocas.

Para a cidade, sobretudo as maiores, isso tudo diz muito pouco ou quase nada. O ano letivo urbano é quase linear, o rural é dinâmico, cíclico e diversificado.

Valorizamos o calendário agrícola também porque ele é um recurso importante para conhecer o tempo e a distribuição do espaço. Isso precisa ser explorado não só em função dos acontecimentos culturais como a festa de São João, ou o dia das mães, mas em função da preparação do terreno, do plantio, da colheita, do beneficiamento dos produtos.

Conhecendo o mecanismo do calendário agrícola fica mais fácil perceber a relação entre um tempo e outro. Antigamente os agricultores tinham mais esta percepção, porque no verão preparavam uma broca nova, para o inverno, no inverno colhiam e guardavam sementes para o verão. No Verão ganhavam dinheiro com a venda do algodão, melhoravam suas casas e casavam seus filhos.

Hoje quase não se derruba mais mato grande que exija serviço pesado, sementes, poucos guardam de modo que a inter-relação entre inverno e verão ficou menos sentida. Porém para atividades que pretendam melhorar a agricultura e o Meio Ambiente, esta ideia do calendário precisa ser recuperada.

O poder público sempre deu atestado de incompetência toda vez que quis ajudar o agricultor, chegando com o dinheiro do banco para preparar o terreno no tempo do plantio, o deste no tempo da colheita, o da ajuda a comercialização depois que os intermediários compraram tudo.

20.5.  A PROPOSTA IMPLICA UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO

Tentamos ensinar desta forma porque queremos que os alunos, a comunidade e a professora se preparem para outro tipo de desenvolvimento diferente do conhecido até agora. Modelo de desenvolvimento que leve em conta as reais condições e possibilidades das pessoas envolvidas e os recursos disponíveis.

Que reconheça a necessidade de todos serem atores e sujeitos, que não seja excludente e marginal. A escola seja uma escola de democracia, onde se aprende a pensar, a agir, a analisar, a transformar, a conhecer e valorizar os recursos. Que tenha mais autonomia e menos dependência.

   Um modelo que para construir não espera só por planos do governo federal ou estadual, pois ele pode ser iniciado na comunidade, no município, na microrregião. Ele pode ser começado com os recursos locais. Para plano de reflorestamento, de conservação de solo, de utilização das plantas medicinais, por exemplo, a comunidade pode começar, sem esperar que o Banco Mundial resolva investir nisso, que o Governo Federal se convença, e o estadual libere recursos.

Acreditamos que a escola pode fazer a opinião numa comunidade rural. São de 3 a 4 horas de contato da professora com os alunos onde se estuda, se lê, se escreve, se analisa, se questiona, se leva e se traz coisa para casa e vice-versa. Novos modelos de desenvolvimento supõem mudança de comportamento, de pensar e de agir.

Quem se atrever a mudar comportamento e não mudar na escola vai ter dificuldade de legitimar. Porém a escola por si só, é fraca para legitimar mudanças. Daí a proposta pedagógica que defendemos exige que o poder público municipal tenha também uma proposta de desenvolvimento. Mais cedo ou mais tarde precisamos chegar lá.

Podemos começar pela educação, mas esta tende a que o Município caminhe para um Programa de Desenvolvimento Sustentável. O caminho seria muito mais rápido para as duas coisas, se houvesse as duas. Havendo uma só, o caminho torna-se muito mais lento.

Há uma questão estratégica. É muito mais fácil convencer uma secretária de educação Municipal a adotar tal proposta, do que convencer Prefeitos e secretários em geral a adotarem uma proposta global de Desenvolvimento. Mas se começamos com uma secretaria de educação, não quer dizer que vamos ficar sem desenvolver a Proposta de Desenvolvimento Sustentável implícita na proposta educacional.

 

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