3.5.5. o que eu fiz com a pesquisa e o que a pesquisa fez em mim

  1. O QUE EU FIZ COM A PESQUISA E O QUE A PESQUISA FEZ EM MIM

 Texto escrito no ano 2000, que fundamenta a origem do uso da pesquisa na Peads, 
    rico em detalhes históricos vividos pelo autor.
Fundamental para entender
as etapas da metodologia da educação do campo, segundo o Serta.

Quando você se depara adulto com marcas muito fortes de personalidade, você procura mergulhar na sua história, na sua infância, adolescência, nas influências recebidas dos adultos, dos modelos, para reconstituir seus traços marcantes e identificar o processo de formação de sua personalidade. Psicólogos, psicoterapeutas, psiquiatras, psicanalistas fazem desse procedimento o seu exercício profissional, com os seus clientes. Antropólogos, etnólogos, analistas sociais utilizam também procedimentos parecidos com os grupos, populações e nações quando tentam identificar o seu perfil, mergulhando nas suas raízes, nas influências recebidas dos seus antepassados, nos valores das épocas vividas.

A pesquisa como etapa da metodologia utilizada pelo SERTA é um traço tão marcante, que resolvi também usar procedimentos parecidos, para identificar o perfil de sua “personalidade”, o processo de sua formação no meu inconsciente, nos meus sentimentos, na minha consciência. Quais foram meus modelos, quem me influenciou, em que contextos sociais, humanos, pessoal, político eu fui influenciado? Como foram formando-se dentro de mim e na minha relação com o mundo e as pessoas, esses traços marcantes, que foram tomando as formas que hoje existem?

Não se trata, portanto, de um mero exercício intelectual no sentido tradicional, de ordenar ideias, sistematizar informações, explicitar categorias e conceitos, analisar discursos e tirar conclusões. Trata-se de uma viagem pela vida, de abrir caminhos para fluir as emoções vividas, agradáveis ou não, desafiadoras para o pensamento, a ação, o sentimento. O coração vai falar, as veias vão pulsar, se fizeram parte dessa construção, que apareçam! A sensação predominante vai ser de síntese que se completa dia a dia.

  • AS MARCAS DOS ANOS 60

 Em 1961 comecei meus estudos de filosofia no Seminário Católico de Olinda, que naquele ano estava sendo reaberto como Seminário Regional. Nesse ano veio gente do Ceará ao Rio de Janeiro, por conta do significado que o Seminário passou a ter no contexto da igreja do Brasil. Tendo a frente padre Marcelo Carvalheira, hoje aposentado como arcebispo de João Pessoa – PB.

Nesse período, o movimento mais renovador que influenciava a igreja era a Ação Católica. Os professores que tinham mais influência nos alunos faziam parte de uma geração formada na Europa que vinha retornando ao Brasil nos últimos anos da década de 50. Por coincidência, todos assistentes da Ação Católica. Almery Bezerra, Juventude Universitária Católica – JUC, Luís Gonzaga Sena, assistente da Juventude Estudantil Católica – JEC, Marcelo Carvalheira, assistente da Juventude Independente Católica JIC. Zeferino Rocha e Zildo Rocha, seu irmão mais novo, também trabalhavam com Ação Católica. Na estrutura da época, havia o assistente diocesano, o regional e o nacional. Todos tinham passado por algum nível deste.

Eu era apenas um iniciante, tinha 19 anos. Era como sempre fui e continuo sendo um apaixonado pelas coisas que fazia e pelos valores que acreditava. Esses professores marcaram uma geração inteira não só de seminaristas, mas de cidadãos, de profissionais e tiveram um papel importante nos acontecimentos posteriores da igreja no Nordeste e de outras partes.

Eu nunca conseguia entender bem o famoso método da Ação Católica. VER, JULGAR e AGIR. Como seminarista, invejava operários, camponeses, estudantes que dominavam bem o método. A literatura disponível na época era invejável, apesar de ser sempre em francês. Já se entrava no seminário maior, lendo francês.

Apesar de não ter tido um domínio grande do método, ele apareceu forte na minha síntese de vida bem mais tarde. A minha aproximação com o método foi inicialmente uma questão da moda. Todo seminarista que se prezava, queria dominar bem o método. Ele era importante para mim, porque era um instrumento de conhecimento da realidade, do meio onde a pessoa vivia. O contexto que pude perceber certamente me marcou mais que o próprio método.

Eu admirava muito o Padre Cardin, conhecido de toda a literatura católica da época, criador do método. Era belga, filho de operário, tornou-se sacerdote e percebeu a contradição enorme entre a linguagem e os conteúdos dos estudos teológicos, com a vida e o meio operário. Percebeu a distância entre os dois mundos e sentiu necessidade de duas coisas, que passou a perseguir na vida.

A primeira foi a de converter-se pessoalmente, de mudar a sua linguagem, a sua compreensão do mundo, de refazer seus estudos teológicos, para poder comunicar-se com o mundo operário. Ele sentia que a linguagem da igreja estava muito distante e longe de ser entendida pelo operário. Sentia como algo elitista, erudita, intelectualizada, abstrata, desligada da realidade vivida. Todas as celebrações eram em latim, porém, pior do que a língua, era a linguagem, era o processo de comunicação, era a lógica que inspirava a catequese, a pastoral, a pregação. O padre Cardin sentia o desafio de poder ser entendido pelos operários, que viviam outra vida, falavam outra linguagem, batalhavam pela sobrevivência dura, em condições desfavoráveis à saúde, explorados pela mais valia do sistema capitalista.

A Segunda foi que Cardin firmou a convicção profunda de que ele precisava conhecer o meio operário em profundidade. Uma parte ele já conhecia da própria vida da família, que era de operários. Mas esse fato não era suficiente. Era mais uma motivação. Para isso, ele sentiu a necessidade de ter uma ferramenta, um instrumento de trabalho, e criou o método do VER, JULGAR e AGIR. A convicção era de que a igreja precisaria conhecer o mundo, o meio, o ambiente, as aspirações, os medos dos operários, as regras do sistema no qual eles ganhavam a vida, as relações que eles construíam a partir do trabalho.

Existia uma realidade que precisava se tornar objeto de conhecimento, de esforço intelectual, de pesquisa profunda e séria. Conhecer bem a realidade, como ela é, para além da percepção que ele conseguia ter, era um desafio pastoral, mas também intelectual. Era uma exigência não só de sua missão e vocação, como também um compromisso com a verdade objetiva, que existia independente de sua vontade.

VER era a primeira etapa desse método. VER é uma palavra que tem uma bagagem de sentido bem grande. Quer dizer, significa muito mais do que representa a palavra. Representava uma atitude pessoal de conversão, uma postura, um posicionamento diante da realidade e do mundo. Significava abrir-se interiormente, despojar-se de convicções anteriores, para poder perceber melhor o que estava fora ou mesmo dentro de si mesmo. Era comum falar-se da “educação do olhar”. Desenvolvíamos dinâmicas e técnicas para educar nosso olhar, no sentido de torná-lo habilitado para perceber a realidade, de explorar as dimensões visíveis e invisíveis da realidade, a ler o texto e o contexto, as linhas e as entrelinhas.

Esse VER do método não poderia ser espontâneo, nem gratuito. Era um VER comprometido, para que dele resultasse numa relação pedagógica entre o evangelizador e o evangelizando. Nele estava embutida a decisão de intervir na realidade. Porém essa intervenção na realidade para a mudança exigia uma fidelidade para não se enganar, não se equivocar. Não poderia ser construída em cima de opinião, de achismo. A realidade operária, não iria desvelar-se, abrir-se para a igreja, se a igreja não a estudasse, não a entendesse.

Trinta e um anos depois, no mês de abril, no município de Orobó, eu me defrontava com 55 estudantes do meio rural estudando a relação que existia entre a escola, a educação recebida nela e a vida dos alunos nas famílias de produtores rurais. No final de três dias de busca, essa relação era desconhecida. A escola tal qual a igreja do tempo do Cardin, não sabia falar a linguagem dos produtores, camponeses e trabalhadores rurais. Era uma linguagem distante da realidade, desconhecedora da mesma, era alienada.

Os estudantes lançaram um desafio. Vocês do SERTA, não poderiam nos ajudar a fazer essa ponte, a construir essa relação? Era o meu primeiro desafio com a educação escolar, pública e formal. Até então todo o meu trabalho de educador era fora da educação escolar. A partir daí, percebi que a vivência da igreja, do meu tempo de juventude, deixou marcas e arquivos no meu cérebro, nos meus sentimentos, que poderiam servir. Uma conclusão foi configurando-se: seria preciso a escola conhecer a realidade dos alunos, das famílias. Mas era preciso as professoras se converter em educadoras. O meio rural precisaria se tornar objeto do ensino, da programação, da avaliação, do conteúdo de ensino, enfim, do currículo. Mas essa foi apenas uma das marcas. A que hoje estou chamando do meu tempo da juventude, de estudante universitário.

  • AS MARCAS POLÍTICAS

 A convivência com os professores, e com o método, da Ação Católica, teve muitos outros desdobramentos. O projeto político-pedagógico do Seminário Regional de Olinda proporcionou a apropriação desse método na vida cotidiana, no esforço de formar os evangelizadores para os desafios da época.

A ideia de pesquisa teve outras marcas fortes. Retornando ao Brasil, depois de três anos na Europa, comecei minha vida profissional e nela, entre algumas coisas fortes, três experiências foram marcantes. Uma no início da década de 70, outra no meio e outra no fim. A primeira, eu não tive participação ativa, só acompanhava através de outros companheiros. Foi no sertão da Paraíba, com os pequenos produtores de algodão. Militantes do movimento da Juventude Agrária Católica, que depois se organizaram no MER – Movimento de Evangelização Rural, perceberam que os resultados do plantio do algodão ficavam na mão dos proprietários de terra. Eles cediam terra para plantar, mas exigiam que o plantador vendesse o algodão a eles. Claro que pelo preço que o dono da terra oferecia! O pessoal passou a fazer com os produtores, os cálculos do custo da produção, porquanto produziam, por quanto vendiam, por quanto o comerciante, dono da terra, vendia às indústrias.

Na ponta do lápis, e não com discursos, descobriram que o lucro ficava só com os donos das terras, que por sinal, eram também os comerciantes maiores da cidade, que por sinal, também eram os chefes políticos locais. O Estatuto da Terra já existia enquanto lei e não era obedecido no Sertão da Paraíba. Esse trabalho proporcionou a formação de inúmeros líderes, que do Sertão da Paraíba migraram para zonas de assalariados rurais, regiões urbanas.

Em 1974, chegou a vez de eu mesmo experimentar com os produtores de arroz do Maranhão, da região do Alto e Médio Parnaíba. Convidado para fazer uma capacitação para líderes rurais em 1974, durante seis dias para estudar os problemas das comunidades. A questão do arroz surgiu em todos os grupos. Porém, as informações eram dispersas, fragmentadas, com muito “achismo” e discursos. Convidei-os para a ponta do lápis e construímos todo o processo da produção de arroz. Conclusões financeiras, econômicas, políticas, de gestão, de tecnologia, saltavam a vista, a cada passo que se dava na computação dos dados, a partir da contribuição dos mesmos.

Comecei a perceber como nunca antes, o efeito que a matemática, pode ter na vida das pessoas e dos grupos. Nunca havia percebido antes o quanto ela poderia ser um instrumento revolucionário, capaz de ajudar na formação de uma consciência crítica, na busca de alternativas para os problemas. Comecei a valorizar o aspecto matemático, quantitativo dos problemas. Na época, privilegiava-se demais a dimensão qualitativa, em oposição às quantitativas. Passei a insistir na importância das duas dimensões para o movimento social e popular. Não tive mais medo de discutir nenhum problema com os grupos, mesmo quando o mesmo não apresentava nenhuma perspectiva aparente de solução. A perspectiva nasce do processo de investigação, pesquisa e estudo.

Mas tudo isso foi apenas um ensaio, diante do que vivenciei entre 1978 e 1980. Depois de dois anos de seca no Sertão, chegou um bispo novo em Petrolina, Dom Gerardo de Andrade Ponte. O mesmo propôs à Cooperação Internacional um apoio de emergência para as vítimas da seca. Logo percebeu que o que era preciso, seria um trabalho mais estruturador de organização comunitária. Fui convidado pelo então subsecretário da Conferência Regional dos Bispos, Paulo Crespo, para assumir essa tarefa. Aceitei o desafio por três anos e passei a compor e coordenar a equipe rural da diocese, a partir de janeiro de 1978, período que estava tendo um bom inverno. Havia muito feijão e os agricultores vendiam por preços baixíssimos, em plena safra, descapitalizando-se de imediato.

Nas reuniões e visitas às famílias, perguntávamos sempre: mas, porque vender agora? Não poderia esperar um preço melhor? As respostas eram muito parecidas. “Mas é a precisão que obriga a gente a vener”

– Que precisão é essa?
– São as dívidas?
– Mas devem quanto? Devem a quem?
– Ao senhor fulano a dona beltrana?
– Mas quanto?

O que me impressionava é que nunca ninguém informava com precisão. Não sabiam também o que produziam, porque era apanhando o feijão e vendendo. O mesmo se dizia que ia acontecer com o milho, a farinha, o algodão e a mamona, a serem colhidos mais adiante.

Havia uma resistência instintiva a contar a produção. Parecia mexer numa ferida. Os comerciantes faziam uma guerra contra o trabalho que a equipe estava tentando desenvolver, para que as famílias contassem o que produziam e tentassem encontrar alternativas para esperar a melhora do preço. Diziam que a equipe queria tomar o feijão (a diocese havia fornecido sementes), queria contar era para pagar imposto, que era comunista. Do lado de Petrolina, eram os cabos eleitorais dos Coelhos. Do lado de Ouricuri, eram os cabos de Felipe Coelho. Resumindo a história, 107 famílias de sete sítios contaram a produção de feijão, milho, farinha e mamona, todos de uma região contígua, que forma o atual município de Santa Filomena.

No mês de dezembro, com o apoio de Mauro Costa, do CERIS do Rio de Janeiro, entidade que assessorava a equipe, passamos três dias só fazendo as contas com os produtores, juntando os dados de cada família e de cada sítio e totalizando em grandes painéis. Dia 13 de dezembro de 1978, dia de Santa Luzia, fizemos uma grande assembleia à noite. O farol da camioneta rural da equipe iluminava os painéis com as grandes sínteses.

A fórmula escolhida para apresentar foi expor os preços dos produtos vendidos pelos produtores no dia 12 de outubro e o preço da véspera da assembleia, 12 de dezembro e tirar a diferença unitária por saco, por sítio e pelo conjunto das 107 famílias nesses dois meses. Só a diferença na época correspondia a uma quantia superior a 150 milhões de cruzeiros. Isso não era um cálculo de lucro, era apenas, o valor da diferença. Isto é, esse seria o valor do dinheiro que eles ganhariam se tivessem guardado a sua produção para vender no final da safra.

O que representava esse dinheiro na cabeça dos presentes? Nem nós da equipe tínhamos a noção do que poderia significar. Convertemos então em quatro outros valores, que dariam para comprar:

75 vacas leiteiras das melhores da região, ou
150 burros mansos para serviço de campo, ou
6, 5 fuscas 0KM, ou

Dois tratores grandes equipados com carroça e arado.

A todo o momento, os participantes intervinham na reunião. Na hora de mostrar os fuscas, que eram desenhados no painel, alguém gritou do meio: “agora está explicado porque senhor fulano troca de caminhão todo ano”. Começaram logo a perceber qual era o destino que estava tendo o seu suor, para o bolso de quem estava indo a sua riqueza. Identificavam pelo nome, mesmo às vezes, sem pronunciar, com medo.

Zacarias, um dos líderes que acreditou na importância de vender fora do pique da safra e vender junto contou sua história. Conseguiu com outros companheiros, guardar toda a produção de mamona. Diziam que ele não venderia, que ninguém queria comprar, que o preço iria baixar. Mas ele foi teimoso, e agora, orgulhoso mostrava aos companheiros, o quanto ganhou e os quanto os demais perderam. O comprador foi comprar em casa, pagou a sacaria e pagou mais caro, enquanto os outros levavam de saquinho para feira, pagavam frete ou levavam no animal, empalhando seu tempo.

Encurtando mais uma vez a história que é muito longa, todos esses cálculos foram para o programa de rádio que eu fazia diariamente, Zacarias contou sua história no programa. Começaram aparecer inúmeras histórias nas cartas, onde produtores arrependidos escreviam fazendo as contas dos prejuízos que tiveram e dos lucros que os comerciantes tiveram nas suas costas.

No ano seguinte, 95 famílias compraram vasos para guardar o feijão, outras organizaram mutirão para preparar os terrenos, limpar e colher o feijão, para não precisarem pagar a apanhadores.  Um feirante me confessou que vendia três vasos por feira. No ano seguinte, levava uma Mercedinha completa para a feira e vendia. Um grande comerciante de Ouricuri saiu propagando “depois que aquele bode cheiroso passou a contar o feijão na rádio, eu não ganhei mais dinheiro com feijão”.

Essa experiência marcou profundamente o trabalho das comunidades, que tanto por amigos como por inimigos, foi considerado um trabalho sério, produtivo, estruturador. Em todos os lugares, que participavam homens, mulheres, jovens ou crianças, do trabalho da diocese de Petrolina, tinha uma marca, um reconhecimento como um dos melhores.

Não imaginava eu, que em 1999, 22 anos depois, professoras, monitoras, crianças e adolescentes, estivessem repetindo essa façanha nas suas comunidades. Devolvendo para as famílias, de forma mais sistematizada e elaborada, o conhecimento produzido com a participação das mesmas. Como educador quanta coisa eu aprendi nesse exercício! Quanta coisa os produtores aprenderam! Quantas ações foram desencadeadas a partir dessa pesquisa?

Eu não sabia era que essa sementinha produzida no sertão da Paraíba, no sul do Maranhão e no sertão de Pernambuco, poderia ser plantada nas escolas da zona da mata! Porque a Proposta desenvolvida pelo SERTA insiste tanto nos dados fornecidos pelas famílias e coletados pelos alunos? Porque insiste tanto em reelaboração, em reconstrução, em desdobramento, em aprofundamento dos dados? De onde o SERTA bebeu essa água? Essa fase de vivência da pesquisa, eu chamo de fase política, do tempo da maturidade.

  • A MARCA DA EXPERIÊNCIA EVANGELIZADORA

Há uma terceira etapa muito importante.  Boa parte das energias de minha vida foi consagrada em mostrar a importância da Bíblia para a atualidade, sobretudo no período que vivíamos de ditadura militar. Nesse esforço, estudávamos cada entre linha, versículo e capítulo, na busca de novas luzes para inspirar a fé, a vida, a fazer a ligação da fé com a vida, com os desafios da pobreza, da necessidade de mudança. Roberto Etave, um padre francês que viveu em Recife, quando eu estava começando minha vida profissional, ajudou a um grupo de pessoas, a descobrir a face educadora da pessoa de Jesus Cristo.

Um método que ele gostava, era estudar as ações de Jesus através dos verbos ativos do texto bíblico, que revelavam a personalidade das pessoas envolvidas nas narrações. Desenvolvia muitos exercícios, que eu gostava, a partir dessa maneira de analisar textos bíblicos. Um que eu apreciava de maneira especial era narrar o evangelho como se fosse um dos personagens da época. Por exemplo, narrar a multiplicação dos pães, como se fosse um dos discípulos, que estivesse na hora, ou como se fosse um dos presentes na multidão, ou como se fosse um repórter cobrindo um noticiário contemporâneo. Eu fazia isso sempre de forma oral e com muita desenvoltura, explorando as entrelinhas, os comportamentos das pessoas, explorava em programa de rádio, tanto no novo como no antigo testamento.

Uma dessas narrações, que gostava muito era a da multiplicação dos pães. Os discípulos queriam mandar o povo embora pelas seguintes razões: o lugar era longe e não tinha onde comprar comida e, além disso, se fosse perto, não teria dinheiro para comprar para tanta gente. Jesus não aceitou essa saída, mandou os discípulos providenciarem comida. Os discípulos reagiram: mas como é possível? Com qual dinheiro? Aonde comprar? E para tanta gente?  Jesus desafiou: pesquisem, busquem saber quem tem, aonde tem, quanto tem.  Acharam uma quantidade insignificante. Os autores do evangelho para dizer que era assim, disseram que eram cinco pães e dois peixes. Podemos imaginar que era bem mais, porém insuficiente a primeira vista.

Esse traço da personalidade de Jesus desafiado diante das necessidades da população é inspirador para todo educador e agente social. Diante das situações problemas não tem alternativa. O milagre não dispensa a mediação da pesquisa, pelo contrário, coloca a pesquisa como componente do milagre. Se com Jesus, que poderia disponibilizar força divina, preferiu que se pesquisasse, quanto mais com nós, educadores!

Mas esse é apenas um exemplo. As grandes personalidades da Bíblia. De Abraão, aos do Novo Testamento, eu explorava essa dimensão de busca inteligente de alternativas de solução dos problemas.  A pergunta de como seria possível realizar a vontade de Deus, formulada por Abraão, por Sara, por Ana, tantas vezes por Moisés no deserto diante da falta de água, de comida, de passagem pelo mar, por Davi diante de Golias, por Maria diante do anjo Gabriel, é a pergunta da condição humana diante da necessidade de construir conhecimentos novos.

  • A MARCA CIENTÍFICA

 Há outra fase que fui marcado pela ideia da pesquisa que chamo de fase científica. Aliás, essas distinções são de natureza metodológica. Na realidade, o interesse científico já estava presente nas demais, e em todas estava forte a presença do sentimento. Nesta fase, eu já desenvolvia a Proposta de Educação do Campo, que na Bahia, os companheiros do MOC, ficaram chamando de CAT (Conhecer, Analisar e Transformar). Eu tinha retomado uma série de estudos mais sistemáticos, pois começava sentir de modo muito forte dentro de mim, a necessidade de sistematizar mais a minha experiência de vida, com mais rigor científico. Pois já fazia muito tempo que eu lia e estudava, porém, sempre em cima da necessidade imediata do meu trabalho e sem muita preocupação em sistematizar.

O Professor João Francisco, companheiro desde a juventude de muitas lutas e lidas, fez a carreira universitária e me falava que o campo da Educação do Campo era pobre em estudos e experiências, que valia muito a pena insistir e avançar na Proposta de Educação do Campo. Já havia lido alguns autores que marcaram, mas vou falar sobre eles quando escrever sobre as demais etapas da pesquisa. Nesse texto, quero retomar a apenas a ideia geral e a primeira etapa.

O coordenador pedagógico do MEB (Movimento de Educação de Base), José Leão passou-me o livro de Pedro Demo, Pesquisa, Princípio Científico e Educativo. Peguei fotocopiado e li de uma vez só. Na primeira vez, eu devorei, como se fala na gíria. Depois foi que reli outra vez, com calma. Tenho o hábito de ler o livro riscando, sublinhando, fazendo notas no rodapé. Mas parei logo, porque estava riscando tudo. Tinha a sensação de que o autor havia escrito o livro para mim e que o mesmo tinha passado pelos mesmos questionamentos que eu. O que eu não esperava era que um professor universitário fosse tão crítico em relação ao sistema de ensino universitário, quando separa ensino de pesquisa e extensão. Quando saiu o outro livro Educar pela Pesquisa, eu comprei imediatamente, li da mesma forma que o primeiro e passei a comprar para presentear amigos/as.

Foi o encontro da intuição prática, da sensibilidade, do compromisso social e político, que eu já cultivava muito dentro de mim, com as bases científicas. Senti o momento como de uma pessoa, que vem nos garantir com segurança de quem conhece o assunto, de quem aprofunda, de quem está legitimado, de quem está oficializado, que as minhas intuições estavam trilhando o caminho correto, que se fosse por aí, iria chegar longe.

Até aí, eu falava da Peads com muita modéstia e timidez, com o professorado, por conta de eu e a equipe termos vindo de fora do ambiente escolar. Minha experiência como professor tinha sido só no tempo de estudante universitário. Que chance teria eu de ser ouvido por professores experientes, com muito tempo em sala de aula, por dentro do sistema educacional?  No entanto, eu estava lendo um autor cuja vida foi dedicada à universidade e ao sistema de ensino, funcionário do MEC e professor universitário, dizendo as mesmas coisas que eu vinha dizendo, fazendo as mesmas críticas, perseguindo as mesmas ideias. Chegamos ao mesmo local, fazendo percursos diferenciados.

Foi então que comecei a perceber que eu vivi todo o meu tempo de vida profissional como educador e, modéstia parte, fui sempre reconhecido e tive a oportunidade de participar de experiências inovadoras. Em 1994, antes de ler Pedro Demo, havia assistido uma conferência de Rosa Maria Torres, equatoriana, que havia sido ministra da educação do Equador, depois consultora do UNICEF no IV Seminário Internacional de Educação Popular na UFPB. Ela falava da grande distância que havia entre a educação popular e a educação formal. Ambas tinham muitas experiências, pesquisas, avanços nos últimos anos, mas que contribuíam pouco, uma para o avanço da outra.

Com os textos de Pedro Demo e o desafio lançado por Rosa Torres, eu me percebi em condições de contribuir com essa síntese, passei a me entusiasmar e me sentir um educador com experiência suficiente para dialogar com qualquer outro do mundo formal da educação. Não se tratava mais de alguém que estava tentando uma brecha para conversar com professores, com um mundo desconhecido, mas de um profissional, com uma bagagem acumulada, com uma síntese própria, com um pensamento original, com intuições inovadoras, em condições de dialogar e contribuir.

A essas alturas também já estava muito claro para mim, que a questão da Proposta que o SERTA estava divulgando não era uma questão didática, ou uma questão curricular, ou uma questão de facilitação da aprendizagem. Teve tudo isso, mas o fundamental já era a consciência de que uma Proposta construída por nós, só teria sentido se fosse de concepção filosófica e nesse campo também me sentia a vontade para contribuir.

Depois de conhecer Pedro Demo, passei a me interessar muito mais para retomar os estudos acadêmicos, me reaproximar da universidade, a conviver mais com meus colegas que fizeram carreira, que tinham também suas críticas severas ao sistema. Já passava dos 50 anos e me perguntava se aguentava o banco da universidade. Como o MEB estava interessado na formação de seus educadores, conseguimos com o Centro de Educação da Paraíba, da UFPB um curso de pós-graduação, sobre Educação Popular, que para mim também foi decisivo. Passei a ler muito e escrever e fazer exercício de releitura da minha vida passada.

Retomei textos escritos na juventude, na vida profissional, pesquisas, artigo e o próprio livro escrito em 1978, publicado pela Editora Vozes sobre Frei Damião. Reencontrei-me com preciosidades, com tesouros, guardados em vasos frágeis, arriscados de perderem-se. Senti uma necessidade ainda mais imperiosa de dar continuidade a essa experiência. Aos 55 anos, candidatei-me ao mestrado de educação, para dar continuidade ao estudo e retomada da minha experiência humana e profissional. Topei com professores, todos mais novos do que eu ou na minha faixa etária. Redimensionei os meus horários e as minhas madrugadas, pois não deixei nenhuma das atividades profissionais que fazia e não tinha como.

O curso do mestrado contribuiu muito com minha síntese e com o avanço da Proposta de Educação. Depois tive outras oportunidades ainda de especialização, que usei para aprofundar a Educação do Campo.

 

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