3.5.3. Os componentes do Currículo – PPP do Curso Técnico de Agroecologia

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DO CURSO TÉCNICO DE AGROECOLOGIA MINISTRADO
PELO SERTA – SERVIÇO DE TECNOLOGIA ALTERNATIVA

  1. PRIMEIRA PARTE – OS COMPONENTES DO CURRÍCULO

3.1. OS PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS

 

O SERTA com 30 anos de vida identificou e escolheu um conjunto de princípios filosóficos que baseiam todas as suas ações. Princípios Filosóficos são as concepções que os diretores e diretoras, educadores, professores, técnicos, prestadores de serviço compartilham entre si e com os educandos e educandas do curso, suas famílias, suas instituições. Definem o que os educadores acreditam para dar sentido à vida pessoal e institucional e criar as suas diretrizes para as ações que executam, para as relações que mantêm, para os resultados que buscam, para os compromissos que assumem.

Esses princípios estão sistematizados em dois livros, o primeiro mais de ordem histórica relata como eles foram sendo construídos e partilhados[1]. O segundo, sistematiza e explicita esses princípios[2]. Os mesmos são estudados com os estudantes nas disciplinas do primeiro módulo e ao longo do curso permanecem como a grande referência. Estão desdobrados em textos didáticos, que são lidos, debatidos em grupos, aprofundados sob diferentes formas didáticas. São eles que garantem o diferencial do curso técnico do Serta. A seguir uma síntese dos mesmos, que constam no segundo livro.

  • Concepção de arte e educação no desenvolvimento (p.49-53). Explicita o papel que a arte tem para transformar o olhar das pessoas sobre a realidade, que não se constitui apenas do que se vê e do que se apresenta na aparência, como também do que tem na sua essência, de maneira intangível, nem sempre visível ao primeiro olhar. Só um olhar mais profundo, como o do artista é capaz de perceber. Assim, o técnico sobre a propriedade, a terra, o solo, as pessoas, o território vai aprender a olhar em seu redor, de forma diferente da que sempre olhava.
  • Concepção de pessoa (p. 54-55). Revela como o olhar das pessoas sobre si mesmas determina o sentido que elas dão à suas vidas no mundo. Sentimentos de autoria, autoestima elevada, autoconfiança são responsáveis pelo desempenho durante o curso e pelo resto da vida. Daí a crença e a valorização da pessoa, do estudante, como protagonista de sua aprendizagem, como corresponsável pelo dia-a-dia da convivência, como participante das ações no campo da inovação e da extensão. A sua vida torna-se conteúdo do curso.
  • Concepção de História (p. 59-64). O texto mostra as duas concepções que mais influenciaram a história do ocidente, a dos gregos e a dos hebreus. Na primeira, a história é natural, o eterno retorno, já predito pelos deuses e não poderia ser mudada. Na segunda, a história é social, construída pelas pessoas e instituições e está em permanente reconstrução. O estudante é convidado a refletir e optar por uma concepção de história, na qual sinta-se incluído e responsável pela sua trajetória.
  • Concepção de Mundo e Natureza (p. 65-72). Articulada com as concepções anteriores, essa identifica as formas de como as pessoas se situam em relação a natureza, se sentem-se como exteriores a mesma, se a identificam apenas como objeto da ciência a ser explorada em benefício dos humanos ou se sentem parte, membro, co-responsável, que em vez de relações de exploração constroem relações de cooperação, parceria. De acordo com uma ou outra concepção, as pessoas definem a sua cosmovisão – visão de mundo.
  • Concepção de Campo (p. 96 a 109). O texto reflete como nem sempre as concepções que a opinião pública ou o senso comum tem sobre o campo favorecem ao seu desenvolvimento. Dependendo da mesma, o campo é o lugar da enxada, da pobreza, do jeca tatu, do retirante, do resto, da sobra. Ou pode ser o lugar da cultura, da produção das riquezas, da reprodução da vida. Daí surgem as concepções diferentes de desenvolvimento, de educação profissional, de ciência, de trabalho, de ascensão social, de ensino e aprendizagem.
  • Ciência, Filosofia (p. 38-41). O Serta distingue, porém não separa a ciência da filosofia. O curso mesmo sendo técnico está impregnado de conceitos filosóficos, éticos, estéticos, críticos, antropológicos. E esses não estão apenas de forma implícita. São estudados, explicitados, justificados. Daí, a ciência que o estudante aprende não ser neutra diante das pessoas e da realidade. Quem escolhe o curso técnico de agroecologia, faz uma opção para transformar a realidade das pessoas, do campo, do trabalho, desenvolvendo conhecimento e ciência.
  • Conhecimento (p. 42-48). Conhecimento é considerado como construção histórica permanente, inacabada. É meio em relação à vida e não fim, portanto, deve estar a serviço das pessoas, do bem-estar coletivo, do desenvolvimento de todos para todos. É instrumental, para servir e não para explorar. O conhecimento científico interage com outras formas (intuitivo, senso comum, artístico, mitológico, espiritual, religioso, filosófico) sem necessariamente, julgar-se como o mais adequado a transformação da realidade e ao bem-estar das pessoas. Não é puramente racional, articula-se com sentimentos, afeto, desejos e classe social.
  • Concepção de Currículo (p. 127-137). Não se constitui apenas como um conjunto de conteúdos objetivos a ser repassado, aprendido e avaliado. Não deve ser oculto, e sim explicitado, refletido, discutido com as pessoas envolvidas. A serviço de quem ele foi construído? Que resultados ele pretende alcançar? Ele ajuda na emancipação dos povos do campo? Quem o constrói está comprometido com as mudanças sociais, culturais, técnicas, ambientais? Os estudantes se apropriam e se apoderam do mesmo, dos seus valores, dos seus objetivos? Essas questões são levantadas para o Serta escolher o conteúdo, a didática, os autores, as disciplinas e a relação entre os educadores e educandos. O Serta constrói e reconstrói o seu currículo há 30 anos.
  • Ensino e Aprendizagem (p. 146-151). Todas essas concepções se estruturam de forma orgânica, uma depende da outra, completa-se com a outra, sem se contradizerem. Elas determinam como deve ser o ensino e a aprendizagem, a forma de organizar as aulas, a convivência, o tempo escola e o tempo comunidade no regime de alternância, as visitas às famílias dos educandos, a distribuição das responsabilidades, a participação nas ações do campo e na construção de tecnologias, os horários e o sistema de avaliação. Enfim, formam um conjunto filosófico de valores que constituem o curso.
  • Paradigmas que embasam o trabalho do Serta (p. 110-118). Esse conjunto de concepções forma um todo coerente e orgânico e passa a ser as grandes referências teórico-metodológicas dos que fazem o Serta. Os participantes de suas ações são convocados a conhecer esses paradigmas. Esses formam o patrimônio pedagógico, técnico e espiritual do Serta. Ultrapassam a dimensão filosófica e incidem sobre os demais campos da atividade, a ciência, a política, a economia, a tecnologia.
  • Concepção de Desenvolvimento (p.163- 170). A maneira de conceber o desenvolvimento leva o Serta a definir sua atuação com as famílias com todos os membros, não só com o chefe de família, o pai ou o marido. Assim, as mulheres, os jovens, as crianças são valorizadas e desenvolvem papel de protagonista e não de beneficiários das políticas e decisões de terceiros. Tanto no curso, como na prestação de ATER ou de qualquer outro processo formativo, os educadores recomendam que na família, todas as pessoas, inclusive as crianças possam ser consideradas tendo papel de participante efetivo, devem ser escutadas, têm opiniões, podem fazer a diferença de outros modelos de desenvolvimento, onde essas dimensões são negligenciadas.
  • Valores explicitados no Planejamento Estratégico 2015-2020. No Planejamento foram expressos com as seguintes palavras: Cooperação, Solidariedade, Transparência, Entusiasmo, Respeito à diversidade, Ética, Afetividade, Compromisso Institucional, Crença nas pessoas, Respeito à preservação da natureza e do meio ambiente, Valorização e respeito às especificidades locais. São formas diferentes de explicitar os paradigmas ou os princípios, ou seja, o conjunto que forma nossas crenças. Definem em que acreditamos. Por essas crenças somos capazes de fazer mais do que a nossa obrigação pura e simples, cumprir horários e dar conta das nossas tarefas.

Esses valores são compartilhados por muitas outras instituições atuais e do passado. Os fundadores do Serta atuaram na militância das Comunidades Eclesiais de Base – CEB, nas pastorais e movimentos sociais do campo, com grupos que aplicavam e desenvolviam a Educação Popular. Vivenciaram o período em que a Igreja Católica no Nordeste teve uma presença forte na defesa dos Direitos Humanos, da Reforma Agrária, da Constituinte, da convivência com o semiárido e não com o combate à seca. Todos esses grupos partilhavam uma posição ecumênica de diálogo com pessoas de todos os credos e sem credos religiosos. O Serta vem dessa herança. Como instituição, o Serta não segue uma religião específica, mas cultiva os valores espirituais presentes nas religiões e dialoga com todas.

 3.2. O DIÁLOGO DOS PRINCÍPIOS COM A REALIDADE E O COTIDIANO DAS PESSOAS 

Se de um lado, o Serta adota e assume princípios filosóficos, de outro, o Serta assume um compromisso com a realidade das pessoas, com o cotidiano, com a vida, suas necessidades. No curso, a vida dos estudantes, sua produção, seu trabalho, sua família, como suas potencialidades e fragilidades fazem parte do currículo. São estudadas como conteúdos das disciplinas. Os educandos são avaliados não só pelo que passam a conhecer, como também, pelo que passam a fazer, a conquistar, a realizar em sua vida pessoal, comunitária, profissional e política.

Os conteúdos, as didáticas, os indicadores de desempenho são selecionados a partir das reais necessidades dos próprios protagonistas. Daí o grande impacto quando chegam no curso, esperando como nas escolas que estudaram anteriormente, conteúdos de conhecimento, livros didáticos, autores para seguirem, o curso começa pela vida dos mesmos: quem são, de onde vem, o que já sabem, o que produzem, como são as famílias, as propriedades, o que ganham, como se relacionam em casa, quais saberes têm que podem contribuir com o curso e assim por diante.

O conhecimento é concebido como convite para a ação, estímulo e provocação para a ação, ou seja, para debruçar-se sobre a realidade e perceber, identificar onde essa precisa ser mudada, o que necessita fazer para conseguir essa mudança; que realidades indesejadas devem ser transformadas em desejadas? Para essa ação transformadora, inovadora, quais os conhecimentos necessários? O que as disciplinas, a ciência, a filosofia, pode oferecer para que a realidade se transforme, as pessoas se emancipem, vivam bem, com prazer e vontade de viver?

Os princípios inspiram as atividades do cotidiano, as emoções, as relações, a produção, a convivência, o trabalho, o ensino e a aprendizagem. Não se apresentam como realidades distantes, idealistas, românticas, inalcançáveis ao comum dos mortais. Pelo contrário, irrigam, como o sangue faz em todas as partes do organismo, as dimensões do cotidiano. Por mais difícil que seja o cotidiano das pessoas esse se torna objeto de conhecimento, de debate, de pesquisa, de análise. As aulas precisam favorecer essas oportunidades, a didática aplicada precisa criar clima e ambiente para a vida tomar conta das aulas.

No curso, desde o primeiro módulo, os estudantes serão estimulados para agirem a partir do que aprenderam. Durante o primeiro módulo constroem uma Linha de Base do nível que chegaram e ao longo do curso vão se auto avaliando e sendo avaliados pelos professores sobre quais passos conseguiram avançar, em termos de ação, de intervenção na realidade, de aplicação das tecnologias, de acesso às políticas públicas, de mobilização social, de melhoria da renda da família, de mudança do sistema convencional de produção para um sistema de base agroecológica.

3.3.  OS CONTEÚDOS SELECIONADOS DO CURSO

 Para favorecer o trânsito entre os Princípios e a Realidade, o curso seleciona determinados conteúdos dentro das áreas de conhecimento, que uma vez, assimilados, apropriados, incorporados pelos educandos vão ajudá-los no desempenho durante e pós curso. Os conteúdos apresentados são percebidos pelos educandos como úteis, significativos para sua vida, sua atuação profissional, portanto, precisam ser aprendidos de cor, no sentido etimológico da palavra latina – de coração. Não no sentido da memorização racional, para concorrer à provas ou concursos, mas de coração, com paixão, entusiasmo, emoção, razão, para facilitar a vida, a felicidade, o amor entre as pessoas.

A Matriz do Curso é a Agroecologia e dentro desse ramo de conhecimento, a área da Permacultura é a predominante. A Agroecologia sendo ciência não se restringe só a dimensão científica. Pressupõe que quem a estude assuma uma postura filosófica diante da vida e do mundo. Portanto, dialoga com princípios e exige uma prática social por parte de quem estuda. Estimula, conduz e provoca as pessoas a fazerem parte de movimentos sociais comprometidos com a mudança da realidade, da justiça, da equidade de gênero, da defesa dos direitos humanos, do respeito ao meio ambiente, de novas relações de cooperação com a natureza, com formas de consumo solidário.

Os conteúdos não podem se distanciar dos princípios, nem da ação. Eles compõem um todo, um conjunto orgânico, de modo que, ao serem selecionados para compor o ensino do Curso de Agroecologia precisa ter muito presente os princípios, os objetivos, a finalidade da formação técnica. Estão distribuídos em quatro módulos, sendo o primeiro a introdução aos demais. Os professores preparam em conjunto o módulo e dentro da visão do conjunto os professores planejam suas aulas. Há, portanto, atividades que envolvem todos os professores do módulo, como as que são especificas de cada professor. Essa seleção de conteúdos e o planejamento são subordinados aos fins e objetivos do curso.

Os conteúdos fazem parte do Currículo do Curso, integrados com os princípios, a ação prática, a didática e a metodologia. Explicitam os fins e os meios de consegui-los. Compreender o Currículo é saber que curso é esse, para que ele serve, para qual perfil se destina, quais as contribuições que o curso tem para o profissional, qual o bem que esse profissional pode desenvolver com a comunidade, o que especifica o curso ou o que o diferencia de outros, inclusive, de outros cursos da mesma nomenclatura.

 

  • AS DIDÁTICAS APLICADAS E DESENVOLVIDAS NO CURSO

 

Além dos Princípios, do Diálogo com a Realidade, da escolha dos Conteúdos, um quarto elemento que compõe o Currículo é a didática. É constituída por uma infinidade de técnicas, de dinâmicas aplicadas pelos professores para a construção dos conhecimentos durante o curso, tanto no período do Tempo Escola, como no período do Tempo Comunidade. Os educadores tem toda a autoridade para identificar, escolher e aplicar as melhores formas de construir os conteúdos de suas disciplinas com os educandos. São dinâmicas para facilitar a aprendizagem, para facilitar a ação, a aplicação do conhecimento, a elaboração da tecnologia, o acesso às políticas públicas da Agricultura Familiar – AF.

São variadas, dependem do perfil do educador, do seu jeito pessoal e particular. Porém, como os conteúdos, são subordinados aos princípios que baseiam o curso.  Não podem contradizer os princípios, por exemplo, não podem ser autoritárias, desrespeitar os direitos, constranger os educandos, distanciar o professor do estudante. Os mesmos conteúdos podem ser abordados através de várias didáticas e várias didáticas podem ser aplicadas numa aula. Os professores tem autonomia para conduzir os estudantes para os laboratórios, para outros espaços que não o da sala de aula. Os professores renovam suas didáticas, procurar recursos inovadores, atualizar-se com pesquisa e estudo para que as aulas sejam momentos agradáveis, de bem-estar de todos.

[1] . Moura, Abdalaziz de. Princípios e Fundamentos da Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável – Peads, uma Proposta que revoluciona o papel da escola diante das pessoas, da sociedade e do mundo. Segunda Edição. Serta. 2013. Recife-PE.

[2] . Moura, Abdalaziz de. Uma Filosofia da Educação do Campo que Faz a Diferença para o Campo. Serta. 2015.

Compartilhei

Rolar para cima