A METODOLOGIA DA PEADS
Esses pressupostos que acabamos de escrever não são monopólio do Serta. Já os encontramos em muitas correntes pedagógicas, filosóficas e políticas. Muitas instituições adotam um ou mais desses princípios. Às vezes, perguntamo-nos pela originalidade da proposta, e não tem sido fácil de explicar, porque a história da sua construção é complexa. Além da história de vida, da maneira como fomos construindo, da aplicação na Educação Formal, encontramos uma parte da explicação na metodologia construída para fazer face aos desafios encontrados e aos princípios formulados. Por isso, achamos importante que a metodologia também fosse apresentada no seu contexto histórico, como ela foi sendo intuída, depois assumindo formas mais definidas e articuladas.
5.1 O Desafio de Conhecer a Realidade
Nossa angústia inicial era saber como o município, as propriedades e os territórios poderiam ser bem conhecidos, identificados com suas potencialidades e seus limites, a ponto de inspirarem pistas para a melhoria da vida das pessoas e do meio ambiente, e que isso só seria possível com mudança de cultura e de paradigma. Foi nesse contexto que descobrimos a Escola Rural. Quem poderia fazer isso eram técnicos habilitados, que estudaram em universidade, que se apropriaram de instrumentais científicos para essa tarefa. Só que os cofres municipais não dispunham de recursos para contratar pessoas desse nível e, se muitos municípios quisessem, não existiria pessoal para tanto. Percebíamos, por outro lado, que a tendência maior dos técnicos extensionistas, sociólogos, economistas era observar a realidade de fora e de acordo com os padrões tradicionais da ciência. Detectariam com facilidade os elementos de dependência, as necessidades de recursos externos e iriam propor pistas e saídas com os recursos externos, com o capital financeiro. Só poucos alcançariam as dimensões do capital social, ambiental, humano, preexistentes nas comunidades ou em condições de emergirem.
Como, entre nós, trabalhávamos a ideia do capital humano, do investimento nas pessoas e nos recursos locais, baratos e disponíveis, levantamos a hipótese de que a Escola poderia conhecer e identificar a realidade das famílias da comunidade. Nós fizemos esse exercício diversas vezes, com mães de família, com produtores, com pessoas com muita dificuldade de leitura, que se dedicavam, em alguns momentos na semana, à reunião e ao levantamento dos dados nas propriedades e a tentar analisá-los. Passamos dessa realidade para outra e pensamos assim:
Se com as pessoas semianalfabetas, com pouca leitura, e reunindo-se
tão poucas vezes, conseguimos fazer tantas coisas, se fizermos com a
escola, com alunos e professoras que escrevem, fazem cálculos, leem,
poderemos fazer mais e melhor!
Era difícil dedicar mais de uma reunião por semana para os mesmos objetivos, tão ocupados eram as pessoas e os técnicos do Serta. Já se reuniam para o culto ou a leitura e o debate do Evangelho, com o sindicato, com as Comunidades Eclesiais de Base, e reunir, ainda, para estudar as propriedades, as roças, os animais seria demais para o pessoal com quem lutávamos. Passamos a alimentar uma sadia inveja das professoras e das escolas — que estavam todos os dias com seus alunos durante quatro horas, passavam dever de casa, tinham autoridade para cobrar e ainda eram pagas para fazer isso —; e os alunos eram estimulados pelos familiares e cobrados pela sociedade para irem à escola. Com o trabalho comunitário, era o contrário. A pessoa só ia se tivesse muita vontade e determinação; havia gente que criticava, botava “gosto ruim”, inventava histórias de subversão; já outros trabalhavam durante o dia ou a semana para poder ter tempo de frequentá-lo.
Entre os fatos marcantes, vale resgatar um que eu vivi com as comunidades do sertão de Ouricuri, Estado de Pernambuco. Em 1978, fui compor uma equipe de trabalho no Sertão a convite da diocese de Petrolina, com o então bispo Dom Gerardo de Andrade Ponte, na coordenação de um projeto de formação comunitária. Ao se deparar com sete comunidades do então distrito de Santa Filomena, hoje município autônomo, a equipe topou com as famílias vendendo o feijão por um preço tão barato que chocava. Alguns agricultores vendiam o feijão na folha, ainda sem colher. Até então, eu só tinha experiência de trabalho na área da cana, do litoral e do brejo. Todos explicavam que, logo depois do pique da safra, o feijão iria subir, e eles perderiam a oportunidade de ganhar dinheiro. A todos investigávamos porque vendiam, se sabiam que o preço ia aumentar quando o feijão saísse de suas mãos para a dos comerciantes, que tinham muitos silos. A resposta era sempre evasiva. Diziam que era a precisão, as dívidas que tiveram depois de dois anos de seca. Perguntávamos quanto era essa dívida, e nunca ninguém apresentou um valor numérico.
Investigamos mais a fundo e percebemos que fazia parte da cultura do lugar. Passamos a observar a evolução dos preços e, logo cedo, o preço foi aumentando, chegando a dobrar e triplicar. Outra justificativa comum era que tinham que vender para pagar a mão-de-obra para apanhar e bater o feijão. Passamos então a discutir com eles a possibilidade de trabalharem em mutirão, assim não precisariam pagar nem vender o feijão. Alguns tentaram e deram-se bem. Quando chegou a safra do milho e da mamona, observamos o mesmo procedimento. Com a farinha de mandioca também. Nas constantes idas e vindas a essas comunidades, que estavam a 187 km de onde morava a equipe em Petrolina, passamos a propor que contassem a quantidade desses quatro produtos ao longo do ano. Os comerciantes e políticos locais fizeram uma guerra, espalhando medo e dúvidas sobre nossa atuação. Diziam que era para eles pagarem impostos, que a equipe queria comprar mais barato, que a equipe era um grupo de fora, de falsos profetas ou comunistas (na época ainda era estigma contra os movimentos sociais, pastorais e ONGs).
Resumindo, 114 famílias de sete comunidades contaram a produção dos quatro produtos principais, em dez meses de discussão. Conseguimos analisar todos os dados e colocamos em grandes painéis, sítio por sítio, produto por produto, fazendo um quadro comparativo dos preços dos quatro produtos no dia 13 de outubro de 1978 e por quanto estava no dia 13 de dezembro, dia da grande assembleia. No meio de um grande terreiro, focamos o farol da camioneta sobre os painéis. O quadro tinha três colunas, os dois preços e a diferença. Ao mostrar os dados, as análises brotaram da assembleia. Era tanta gente querendo falar! A diferença em apenas dois meses era tão grande, que, para entender o valor, tivemos que comparar o que daria para comprar, se eles tivessem deixado para vender seus produtos em dezembro, e não em outubro. Segundo as contas feitas com os presentes, o valor da diferença daria para comprar na época, a preço de mercado, os seguintes produtos:
- 7 automóveis Volkswagen zero km, modelo fusca (ainda sobrava a metade de um).
- Ou 3 tratores médios equipados com carroça e arados.
- Ou 150 burros bons, dos melhores da região.
- Ou 75 vacas boas de leite, das melhores da região.
O consultor do Ceris do Rio de Janeiro, Mauro Costa, que monitorava o projeto, estava nessa ocasião conosco e ele apresentava em gráfico essa diferença para cada sítio e família analisar o seu prejuízo. Zacarias, um dos participantes, apresentou as suas contas com os 42 sacos de mamona que guardou com seu irmão e só vendeu quando os preços estavam altos. Os prejudicados, por terem vendido no pique da safra, faziam as suas próprias contas. Quando se fez a comparação com os fuscas, um saltou do meio do grupo e falou: “Agora sei porque Sr. Fulano, todo ano, muda de carro!”. Todos os detalhes eram comentados num programa diário de dez minutos pela manhã com muita audiência e que recebia muitas cartas. De todos os cantos, começaram a chegar cartas com os prejuízos que as outras famílias tiveram.
No ano seguinte, essas famílias compraram à prestação e pagaram 99 silos grandes para guardar os seus produtos. Um comerciante que vendia três silos por semana, na feira de Cruz de Malta, passou a vender, no pique da safra, uma F 4000 carregada de silos. Um comerciante famoso de Ouricuri andou dizendo: “Desde que Moura começou a falar dessas coisas na rádio, nunca mais ele ganhou dinheiro com feijão”. Os mutirões passaram a ser feitos não só nas colheitas, como na preparação dos terrenos, nas brocas e nas limpas. O pessoal ganhou autoestima e autoconfiança. Na maior seca, a de 1980-1983, criaram 35 associações de compras comunitárias, em média de 10 a 30 famílias por associação. Aprenderam a fazer contas, calcular, brigar por preços mais baratos, por compras maiores para que a mercadoria fosse entregue no local.
As emergências que eram indicadas por chefes políticos passaram a ser conquistas dos produtores, em suas próprias roças. Comparando o nível de participação entre um serviço apontado pelos políticos e um apontado pela própria comunidade, um agricultor deu esse testemunho:
“Eu contei com meus companheiros aqui presentes… sabe quantos carros-de-mão de terra a gente bota por dia na nossa obra? Cinquenta, cinquenta e cinco. Sabe quantos a gente botava nas outras? Cinco, seis carros de mão!”
Dessas comunidades, surgiram, depois, grupos de mulheres, de jovens, de casais; mudaram a direção do sindicato, que era ligada aos políticos e fazendeiros. O trabalho foi um referencial para todas as dioceses do Nordeste, que passaram a procurar alternativas de convivência com a seca. O trabalho da diocese de Petrolina era considerado como exemplar. Por conta dele, fui convidado para fazer a coordenação pedagógica do Centro de Capacitação e Acompanhamento aos Projetos Alternativos da Seca – Cecapas, criado pela Conferência Regional dos Bispos do Brasil.
Por que resgatar essa história? Porque revelou o que uma pesquisa, com a participação dos interessados, e com análise e devolução para os que participaram foi capaz de provocar. Essa lembrança voltou com muita força a partir de 1992, 1993, quando me deparei com o desafio de pensar uma Escola que tivesse um papel de construtora do conhecimento de uma realidade local. O quanto uma pesquisa na mão de alunos, professores e pais poderia revolucionar uma comunidade! Mas se a escola fosse se dedicar a esse tipo de coisa, como ficaria a aprendizagem das disciplinas? Passamos a estudar formas nas quais essas realidades pudessem ser desdobradas dentro das disciplinas. Lembrei-me de que uma pesquisa dessa estava inteiramente dentro da Matemática; de que o processo vivido pela comunidade e pela equipe cabia perfeitamente dentro de textos, redação, poesia, relatório, comunicação, linguagem, jornal, reportagem, cartas, cartaz e outros documentos; de que esses textos estavam permeando a Gramática, a sintaxe; de que o estudo dos produtos, suas formas de colheita, de plantio e de comercialização estavam impregnados de Geografia, História, Estudos Sociais; de que o processo exigia criatividade, arte, organização, associativismo e cooperação.
Enfim, descobria que uma experiência como essa poderia perfeitamente ser vivida dentro da escola e desdobrada com as disciplinas, desde que houvesse um método que garantisse a continuidade, a avaliação, a sistematização dos conhecimentos. Comecei a perceber que, se a Escola entrasse numa pesquisa desse porte, ela estaria revolucionando seu papel, porque estaria chamando a atenção da comunidade para os problemas da mesma e estaria provocando-a a organizar-se para fazer frente a eles. Eram essas as primeiras intuições: como a escola poderia conhecer a realidade local de um município, de um território e, ao fazer assim, não prejudicar o aluno na aprendizagem de modo que ele continuasse aprendendo o que já aprendia, mas de outra forma, e provocando resultado não só nos alunos, como também na família e na professora.
5.2 As Influências Religiosas
No meu tempo de estudo no Seminário Católico, na década de 60, em Olinda, Camaragibe e Roma, a figura do Padre Cardin era muito conhecida. Foi o fundador da Juventude Operária Católica – JOC, de onde saíram os demais ramos da Ação Católica – Juventude Agrária Católica – JAC, Juventude Estudantil Católica – JEC, Juventude Universitária Católica – JUC, Juventude Independente Católica – JIC. Padre Cardin viveu um desafio parecido com o que estávamos vivendo. Na sua época, década de 30 e 40, ele percebeu que a pregação da Igreja estava distante da realidade dos operários; era testemunha disso, porque ele próprio era de uma família operária, e percebia o quanto a linguagem da Igreja estava distante da realidade operária. Passou a falar da conversão que era preciso a Igreja fazer, se quisesse evangelizar os operários. Os seguidores de Cardin insistiam em desaprender o que aprenderam no seminário, para aprender de novo, se quisessem evangelizar os meios operário, estudantil, universitário, agrário. Sentiam a Igreja antes do Concílio Vaticano Segundo (1962-66) elitizada, distante das massas operárias, com uma linguagem não mais condizente com os desafios vividos pelos operários.
A partir desse desafio, Cardin criou o famoso método “Ver, Julgar e Agir”, que inspirou muito nossa proposta. Era o método para evangelizar o meio operário e começava sempre pelo Ver, observar, pesquisar, entender a lógica, a linguagem, partir dos fatos simples e cotidianos da classe operária, da família, da fábrica e daí, então, à luz do Evangelho, procurar entender mais a fundo os acontecimentos, os envolvidos, a conjuntura, emitindo um julgamento, um juízo, relacionando as idéias, associando, era o Julgar, e não ficando só nesse exercício de observação e análise, nessa elaboração intelectual, mas comprometendo-se com as pessoas, com as mudanças, decidir Agir. Uma análise da Educação Popular e dos Movimentos Sociais, que tiveram suas raízes históricas nas décadas de 50 e 60, me leva a crer que esse método foi berço e ambiência para muita iniciativa política e social que vieram depois. Veremos mais adiante que a metodologia da Peads teve muita inspiração no método de Ação Católica: Ver, Julgar e Agir.
5.3 As Influências Acadêmicas
Quando a metodologia da Peads dava seus primeiros passos com as intuições sobre a pesquisa, um colega emprestou-me o livro de Pedro Demo, Pesquisa, Princípio Científico e Educativo (Cortez, 1990). Houve um salto de qualidade. Aquilo que pensava timidamente, como uma intuição, estava sendo explicitado e aprofundado com bases mais científicas. Depois, outro livro, Educar pela Pesquisa (Autores Associados, 1996), completou ainda mais. Demo justifica a pesquisa como instrumento fundamental da formação, da construção do raciocínio, do jardim da infância ao doutorado. Desmistifica a pesquisa como privilégio ou patrimônio de pesquisadores acadêmicos e a coloca na mão dos professores dos ensinos Fundamental e Médio. Faz crítica violenta à Academia, que se apropriou desse instrumento e não o socializou, não ensinou os professores a usá-lo. Pior ainda, nem o usou com e para os seus professores nem com os extensionistas, reservou-o apenas para os pesquisadores, mestres e doutores.
A equipe passou a ter muito mais autoconfiança depois dos livros de Demo. Esse autor passou a ser estudado pelas professoras, sobretudo educadoras de apoio. Tirou medo e dúvidas, com o seu embasamento teórico. A pesquisa é apontada como instrumento para a elaboração e reelaboração do pensamento, do raciocínio. Sem esse instrumento, a aula vira cópia da cópia, o professor e o aluno não chegam a elaborar suas próprias idéias, o pensamento não se constrói, copia-se, repassa-se e dificulta-se a aprendizagem, que só é garantida quando o professor e o aluno conseguem elaborar suas próprias idéias. O autor amplia também o universo da pesquisa e o seu objeto, não tem que ser só bibliográfica ou conduzida só por profissionais. Despoja a pesquisa do aparato acadêmico e do rigor positivista.
Com os livros de Demo, reli os fatos de Ouricuri e tantos outros da minha militância que gostaria de narrar, mas os limites deste texto não permitem. Notei o quanto eu usava a pesquisa, sem perceber, nas iniciativas com as comunidades, quando fazia diagnóstico dos problemas da comunidade, e, de fato, o quanto esse instrumento era valioso, diversificado e poderia ser usado com muitos métodos — pesquisa-ação, observação participante, entrevista, estudo de caso, questionário, histórias de vida — e com muitas técnicas.
5.4 As Etapas da Metodologia
5.4.1 Primeira Etapa da Metodologia: ver, observar, levantar informações, pesquisar, identificar os primeiros conhecimentos que as pessoas já têm sobre um objeto
Quando chegou o momento de capacitar as primeiras professoras para a Proposta, entendemos que a metodologia já deveria ter um formato mínimo, sob pena de deixá-las com mil questionamentos e sem pistas de ação. Como uma das lacunas mais sentidas era a distância entre a escola e a vida familiar, o trabalho, a produção, achamos, como Padre Cardin, que se a Escola quisesse ensinar mesmo aos agricultores, precisaria estudar a linguagem, conhecer mais a realidade, aprender algumas coisas, esquecer outras. Daí, a primeira ideia ter sido a de pesquisar, observar, ver o que existia na família, no trabalho, na produção.
Observamos que, na região do Agreste, onde atuávamos com as comunidades, o início das aulas acontece no final do verão, mês de fevereiro, tempo em que os produtores estão preparando a terra para plantar, tempo escasso em água, em ração para os animais, tempo em que muitos chefes de família trabalham nas cidades maiores, sobretudo em construção civil. Tempo também em que a natureza tem o clima quente, a vegetação perde parte de suas folhagens e a família se dispersa para ganhar o pão. Quando chega o inverno, todo esse quadro muda, entre o final da primeira unidade e o início da segunda. Os membros que estão fora tentam voltar para pôr o roçado; diminui a mão-de-obra com os animais porque aparece água e pasto; a folhagem das plantas ganha vigor. O aluno, em vez de chegar suado na escola, chega molhado da chuva. De uma unidade para outra, aconteciam todas essas mudanças na família, na natureza, no trabalho; e a escola nem tomava conhecimento. As aulas eram sempre um hiato, uma pausa nesse ritmo, que não tinha nada a ver com o que mudava em redor.
Descobrimos que todos esses fatos eram ricos para a escola pesquisar, agradáveis e gostosos para os alunos revalorizarem o meio onde viviam. Distribuímos, ao longo de um ano, levando em conta o ciclo produtivo, ora o ciclo das estações, um instrumento que chamamos até hoje de Ficha Pedagógica. Cada ficha continha perguntas para orientar as pesquisas e os roteiros para desdobrar os dados levantados pelas pesquisas. Os primeiros temas foram:
- A preparação do plantio: quem ia plantar; quem já tinha terra, se já estava preparada, que tamanho; se já possuía semente; se queimava o mato para plantar…
- As condições do plantio: quem já havia plantado; se já havia nascido, quantas limpas já haviam dado; se nasceu bem; se deu praga ou doença, qual foi a praga e a doença, como as pessoas tratam, se usam veneno…
- As colheitas verdes: quem já colhia algo verde, feijão, milho; se as chuvas foram suficientes para as lavouras e para fazer água; se os açudes ou barreiros encheram; como estavam os preparativos para as festas juninas…
- As colheitas secas: quem colheu o feijão; se guardou; se vendeu, qual foi o preço; se o que guardou daria para atravessar o ano, de que jeito e como guardou; se o milho já havia sido colhido…
- As fruteiras da propriedade: quais as fruteiras existentes; quantos pés são; se estavam frutificando, época de floração; uso das frutas, quantidade e comercialização; quem as plantou, há quanto tempo; pragas e doenças que atacavam…
- Os animais da propriedade: quais e quantos de pequeno, grande e médio portes; o que comiam; onde dormiam; doenças e tratamento; reprodução e manejo; valor comercial…
- As águas na propriedade: de onde vinham; o que traziam e o que levavam; quais as fontes de água do consumo humano; como eram tratadas; se tinham barreiro, açude ou cacimba, cacimbão, poço artesiano; quem usava a água…
- Os recursos naturais: se existia mata antigamente, quais eram os tipos de madeira e de animais que tinham; como usavam as matas; o que há hoje no lugar.
- Os rios: como eram; que volume de água escorria; que profundidade tinha; como e para que as pessoas o usavam; se tinha peixe, quais eram os tipos mais comuns; como está hoje…
Eram poucos os exemplos, mas já dava para perceber o quanto mais poderia se estender e se detalhar, como cada temática dessa se associava a outras. Se existiam todas essas possibilidades, como a Escola poderia fazer? O dever de casa, apesar de polêmico segundo as correntes pedagógicas, era conhecido de todas as professoras e alunos. Surgiu então a idéia de aproveitar o dever de casa e fazê-lo em forma de perguntas para os pais e as mães. Seria uma forma de os pais, mesmo analfabetos, participarem das respostas com seus filhos. Fomos construindo algumas orientações, tais como: não fazer perguntas que os membros da família não se sentissem em condições de responder; não fazer perguntas de opinião (o que pensam, o que acham), mas perguntas que tivessem respostas quantitativas (não valia trazer respostas como porção, tuia, bocado, magote, alguns, maioria, minoria, muito, pouco) e fáceis de serem respondidas; não levar mais de uma pergunta de cada vez. O aluno não teria desculpa de dizer que não sabia fazer e poderia até levar a resposta de forma oral.
Levar pergunta da escola para a vida de casa poderia parecer intromissão na vida particular, dependendo da forma de apresentar a idéia. Mas já representava outra ótica; a família recebendo perguntas da escola sobre a vida dela era como se a Escola estivesse dizendo para a família que essa era importante para aquela, que o seu trabalho seria objeto de estudo e de valorização, que a vida do agricultor é tão importante que está ligada ao estudo, à produção do conhecimento do aluno. Era também uma forma de despertar uma curiosidade: o que a Escola estava querendo com isso? Seria papel dela estar despertando interesse do aluno pela realidade da família?
Com esses caminhos, fomos construindo o que chamamos hoje a Primeira Etapa da Metodologia da Peads, ponto de partida da aprendizagem, do mais simples ao mais complexo, do pessoal, familiar, sensível, prático ao mais elaborado. Valorizar os conhecimentos prévios das crianças, os que podem ser adquiridos com a vivência familiar, com o trabalho, com a vida social, que todas as pessoas podem ter, possuir e construir: crianças, adultos, analfabetos ou letrados. Conhecimentos esses que, muitas vezes, as professoras não tinham e precisavam aprender com os familiares ou os alunos, revelando outra inversão nos costumes tradicionais. Na Peads, três atores básicos são os que ensinam e aprendem: a professora, o aluno e a família. Na Escola Tradicional, quem ensina é a professora, quem aprende é o aluno, e a família sobra.
Conhecimentos esses que entram primeiro pelos sentidos, pelo olhar, pelo cheirar, pelo experimentar e provar, pelo tocar, pelo ouvir. Não são menos importantes do que os conhecimentos resultantes de um exercício intelectual mais apurado. Percebemos também que a criança do meio rural, quando começa a estudar, já traz consigo uma vida cheia de saberes e experiências sobre as roças, os animais, a natureza, o meio rural, pois, desde cedo, participa ou está próxima da vida produtiva de seus pais. Ao sentir que a escola valoriza esses conhecimentos, vivências que já trazem consigo, as crianças vão sentir-se muito mais a gosto na classe.
Essas pesquisas vinham atender a um grande desafio, que era proporcionar à Escola o reconhecimento de que os familiares poderiam participar mais da educação de seus filhos; de que seus pais, mães e irmãos mais velhos poderiam ser mais parceiros da escola; de que a realidade rural poderia ser objeto de conhecimento escolar. Era também a oportunidade de a professora conhecer mais a fundo quem eram seus alunos e os pais, as condições de renda e de vida deles. A sistematização está mostrando como mudou a relação da escola com os familiares, o quanto esses se sentiram mais responsáveis e parceiros, pois entenderam que poderiam também participar como “cabeça-de-obra”, levando para a escola não só uma “mão-de-obra” para pintar ou reparar algo, mas, também, a sua atividade intelectual, os seus saberes.
A essa atividade de observação, levantamento dos conhecimentos prévios, dos conhecimentos sensíveis, práticos, de pesquisa aplicada aos familiares ou às pessoas da comunidade, chamamos: Primeira Etapa da Metodologia da Peads.
5.4.2 Segunda Etapa da Metodologia: analisar, desenvolver, desdobrar os dados da pesquisa, aprofundar, elevar o patamar do conhecimento trazido pelas pesquisas
O que fazer com as respostas do dever de casa? O que era diferente dos deveres tradicionais? Construímos uma orientação em que o trabalho do aluno teria que ser respeitado, valorizado; portanto, a resposta seria cobrada dele.
Se não trouxesse no dia, que o justificasse e acordasse com a professora outra oportunidade de trazê-la. Ele precisaria sentir que sua resposta é importante e a classe não poderia passar sem ela.
Se faltar a aula no dia da resposta, que fosse cobrado no dia seguinte. Não era uma orientação tola, dispensável. Era a forma da dinâmica e das técnicas expressarem os princípios e as crenças da Peads, que tem a valorização do aluno, da família e da sua participação como elemento fundamental da aprendizagem.
Isso foi um hábito cultivado na Educação Popular. Nunca deixar de valorizar a presença e também a ausência das pessoas. Muita gente que falta a uma reunião não é percebida pelos presentes nem é cobrada. Essa pessoa vai ter a sensação de que a sua presença não é importante, pois nem sequer deram conta da sua ausência. As pessoas que recebem tarefas e não são cobradas para dar conta sentem como se as tarefas não fossem importantes. A Peads nasceu com essa preocupação, fazer que as pessoas sintam o quanto são importantes e o quanto seus saberes e seu desempenho contam para a sua formação.
A metodologia pressupõe que a professora compute os dados da pesquisa com os alunos, que dê visibilidade ao todo, ao conjunto das respostas, para que possam sentir o resultado e o produto do seu trabalho, possam visualizar em papel, em quadro, em coluna, com giz, ou com pincel atômico, ou com carvão, ou com risco no chão. Mas que não se deixe o aluno sem a visualização. Porque essa insistência? Porque o produto da pesquisa passa a ser o conteúdo, e o meio da aprendizagem passa a ser parte do currículo. Se a professora não apresenta, é como se não apresentasse a lição, o livro, o caderno ou as anotações da Escola Convencional.
Se a professora passa a pesquisa para saber se na família há gente se preparando para plantar e se já tem terra para plantar é porque, com base nas respostas a essas perguntas, ela vai continuar o ensino. As respostas cabem em colunas: uma com o número dos que vão plantar, outra dos que não vão. Ou uma dos que já têm terra, outra dos que ainda não têm e outra dos que têm em parte. Esse pode ser um conteúdo básico para a professora desenvolver conceitos matemáticos: maior; menor; diferença; operações de soma, adição, subtração, divisão, fração; porcentagem; etc. A opinião dos alunos diante dos resultados pode ser uma fonte riquíssima para escrita, leitura, formação de palavras, gramática; como também para socialização, trabalho em equipe, desenho, cidadania, fontes de renda. O mesmo pode-se fazer com Geografia, História, Ciências Sociais. A resposta dos alunos vira caderno, livro, meio, instrumento e conteúdo da aprendizagem.
Para isso, foram criadas as orientações pedagógicas; foram feitas as capacitações das professoras, pois era um grande salto para quem foi formada no costume de guiar-se pelos livros, já prontos, acabados, bastando apenas repassar para o consumo dos alunos. A professora já sabia o que ia ser dado em sala de aula, até onde dava para ir. Tinha uma segurança de que não se perderia, de que não seria preciso inventar, criar. A realidade da Peads é outra, essa segurança ela perderia, ganharia outras: saber que estaria ensinando a partir da vida dos seus alunos, saber que seus alunos estariam participando com os pais; saber que ela poderia inventar, criar, ousar com seus alunos; saber que estariam participando da construção do conhecimento, e não só repassando; etc.
Entre as orientações, ensinava-se que, a partir das respostas, a professora tinha a tarefa de desdobrar, desenvolver esse conhecimento ainda precário que os alunos trouxeram e elevá-lo para outro estágio, para um conjunto mais ordenado, um produto superior ao que eles fizeram individualmente. Para isso, teria de analisar, com os próprios geradores do conhecimento inicial — portanto, com os alunos — os dados da pesquisa. Os alunos trouxeram dados, números “vivos”, realidades “concretas”, conhecimentos ainda muito primários e superficiais. Trouxeram, na linguagem de Vygotski, um conhecimento “real” que puderam construir até o momento e, agora, precisam dar um novo salto, elevar o patamar para um conhecimento “proximal”, só possível com o apoio da educadora.
As Fichas Pedagógicas têm um papel fundamental nessa tarefa, para apoio à professora. Inúmeras técnicas e dinâmicas são propostas para essa etapa. Como se trata de uma Escola, e não de um grupo informal, a tarefa da professora inclui o desdobramento através dos conteúdos das disciplinas. Ela vai, a partir das temáticas resultantes dos dados da pesquisa, ensinar Português, linguagem, comunicação, escrita, leitura, Matemática, Geografia, História, Ciências Sociais e Biológicas, temas transversais de direito, cidadania, identidade cultural, etc… A professora escolhe os conteúdos e os momentos mais adequados para as disciplinas e suas partes.
Evidentemente a forma de ensinar não será segmentada, compartimentada como antes. No começo, falávamos de interdisciplinaridade; hoje, preferimos falar de interdimensionalidade, porque não se trata apenas de ensinar as disciplinas, como também de ensinar valores, estimular atitudes solidárias, alimentar a autoestima, construir a confiança e a identidade, portanto, de usar outras linguagens, que não só a da disciplina racional. Mexe com as emoções e os sentimentos, com os mitos, com os sonhos e os projetos de vida. Não se justificam certas disciplinas isoladas, como muita gente propõe, a exemplo da Educação Ambiental. Uma vez que todas as disciplinas são ambientais. Ou o Português e a Matemática são ambientais ou não atendem à Proposta, pois a forma de tratar as letras e os números é com uma cosmovisão ambiental. A maneira de enxergar a realidade, descrevê-la e atribuir-lhe quantidades é ambiental, é cooperativa e solidária.
No início, a professora sente dificuldade de desdobrar os dados das pesquisas. Porém, depois que começa, a criatividade emerge com facilidade. Ela aprende a ler o contexto das coisas, associar, relacionar, comparar, analisar e sintetizar. Há muitas realidades que vão exigir novas pesquisas da professora. Nem sempre nos livros. Se o aluno vai pesquisar o tamanho da terra dos pais, ela não vai saber desdobrar muita coisa. Mas, se procura um pai e combina para visitar a sua propriedade, ele pode ensinar como se mede, como se usa a braça de 10 palmos — que equivale a 2,20 metros, pois o palmo tem 22 centímetros —; que uma conta, no Nordeste, é de 10 braças quadradas; e explica o que é quadrada. A professora vai entender que o pai sabe Matemática, usa Geometria e tem outras formas de raciocinar.
Quando a professora pede para cada aluno trazer um tipo de mato que cresce nos roçados durante o inverno, geralmente fica sem saber como desdobrar essa pesquisa. Mas se combina com um agricultor curioso, ele vai dizer o nome de todos ou da maior parte; a professora vai escrevendo no quadro; ele explica, além do nome, para que serve, qual o terreno onde costuma crescer, se os animais o comem, se serve para algum remédio, etc. A partir daí, no quadro, a professora tem uma série de nomes de coisas da vivência dos seus alunos para escrever, copiar, formar frases. Pode ensinar sobre os tipos de raízes, de folhas, de uso das plantas. Se a pesquisa é sobre as plantas medicinais, uma avó da comunidade terá condições melhores de dar a primeira parte das aulas do que as professoras. Essa avó vai sentir-se valorizada em ser visitada pela professora e pelos alunos, em ir para a escola, em transmitir o seu saber acumulado na prática. Se vai pesquisar sobre as águas do riacho e convida uma pessoa de 70 anos, outra de 50, outra de 30 para cada um falar sobre como era o rio no seu tempo de juventude, como usavam as águas, como e quais eram os peixes; a professora iria provocar um encontro de gerações, recuperando a história do lugar, reconstruindo o meio ambiente.
Evidentemente, essas pessoas vão se sentir valorizadas pela Escola, pela professora, pelos alunos. O inverso também é verdadeiro. O menino e a menina não valorizavam tanto o seu avô, porque era analfabeto e agricultor, mas viram os avós falando com tanta propriedade, com tanto conhecimento da história e das coisas, sentiram a professora e a escola valorizando com entusiasmo o seu saber, que os alunos já olham de outra forma para o idoso da comunidade: em vez de pessoas superadas, vão enxergá-los como poço de sabedoria, de experiência, de conhecimento, de tradição. Essas descobertas não são idéias bonitas, são fatos e depoimentos que se escutam das professoras e das famílias.
Não existe uma receita para desenvolver essa etapa. Costumamos dizer que existem inúmeras técnicas e dinâmicas, porém, metodologia, existe uma. A professora poderá fazer uso de mil recursos pedagógicos, artísticos, sonoros, bibliográficos, ecológicos, recreativos; pode visitar, passear, caminhar com os alunos, ir para as roças, as fazendas, convidar pessoas para a sala de aula, contanto que a classe construa um novo conhecimento a partir das pesquisas que foram feitas, dos dados que foram computados, das respostas que os alunos trouxeram de suas famílias ou de suas comunidades; contanto que a professora assegure à classe que sua tarefa de casa, a resposta de seus familiares, aparentemente tão simples, valeu para a construção dos demais conhecimentos. Sem a resposta da família, sem a responsabilidade do aluno, esse conhecimento não seria construído da forma que foi.
Ao tentar dar essa garantia, a professora não estará simplesmente construindo um conhecimento. Aliás, pode até não ser, do ponto de vista cognitivo, tão amplo. Ela estará transmitindo aos alunos outras mensagens, que nem precisam ser faladas, verbalizadas ou explicitadas. Há um outro discurso, um outro currículo oculto que se repete a cada momento, que usa a mesma metodologia de pesquisa e desdobramento dos dados. E é esse discurso, não-verbal, que certamente vai marcar mais o aluno do que o próprio conhecimento, pois vai se dirigir aos sentimentos, ao inconsciente, ao coração. Se fosse verbalizado, teria mais ou menos o conteúdo que segue.
Vocês perceberam como aprendemos? Colocamos uma pequena pergunta para vocês fazerem em casa, vocês trouxeram a resposta, juntamos as respostas que trouxeram, e olhem em que deu! Aprendemos tantas coisas a partir da iniciativa de vocês, da vida, do trabalho, da contribuição de seu fulano, pai de beltrano. Vocês perceberam como aprenderam Matemática dessa vez? A partir da terra onde os pais de vocês trabalham! Estão vendo como a Matemática está ligada à vida de vocês? Observem que se vocês não tivessem trazido a resposta do dever de casa não teriam contribuído com essa construção! Vocês notaram, nos textos e nos debates que fizemos, como vocês conseguem falar com entusiasmo das coisas que vivem e com as quais convivem? Estão percebendo que a Escola agora mudou? Que está valorizando o trabalho do agricultor e da comunidade? Que bom que agora estamos construindo conhecimento juntos, não sou eu só que passo para vocês as coisas que eu aprendi e estudei; estou construindo com vocês! Agora não sou eu só que ensino: o pai de fulano, a avó de beltrano contribuíram para a aprendizagem de vocês e a minha! Vocês podem orgulhar-se dessa nova maneira de aprender: no tempo em que estudei, era a professora que ensinava sozinha!…
Poderíamos prolongar a verbalização desse discurso. Ele não vai ser apreendido através da verbalização, mas da própria vivência. A metodologia transmitirá, sempre que usada, ao inconsciente e ao consciente do aluno, essas mensagens de valorização, de autoconfiança, autoestima, identidade, amor, carinho, afeição, cooperação. Indicará o novo papel que a Escola e a Educação estão exercendo; as mudanças que estão sendo operadas na Pedagogia da Escola, nas relações novas construídas com a família e a comunidade. Construirá não só conhecimentos, como também valores, atitudes, habilidades. É com esse conjunto metodológico que o aluno dará continuidade à aprendizagem depois da Escola e para o resto da vida. Dessa aprendizagem, o aluno precisará por toda a vida, seja em que lugar viver e em que atividade desempenhar. Os meros conhecimentos poderão servir ou não, serem esquecidos ou lembrados, e não farão tanta falta. Porém, se faltar autoconfiança, auto-estima, identidade, amor, afeição e outros valores; se faltar atitudes solidárias, cooperativas; se faltar autonomia, determinação; isso, sim, fará muita falta aos alunos, em qualquer que sejam as circunstâncias de sua vida futura.
5.4.3 Terceira Etapa da Metodologia: transformar em ação o conhecimento constituído, intervir na comunidade a partir do conhecimento novo, devolver o conhecimento produzido para quem ajudou a gerá-lo
O que fazer depois de todo um processo desse tipo? O que fazer com o conhecimento que foi gerado e construído? Que garantia pode-se ter de que, de fato, houve aprendizagem? Para que vai servir essa construção? Aonde chegar com ela? São perguntas que não podem faltar à professora se ela quiser entender a metodologia. Dentro do princípio de que o conhecimento é instrumento, ferramenta, meio de ação; que o conhecimento não é neutro e já foi construído desde o início com esse entendimento, agora então, é chegada a hora de dar outro passo. Vejamos as orientações construídas.
Criar produtos desse conhecimento, dar um formato que possa ser apresentado, mostrado para os familiares e a comunidade, para que vejam a que ponto chegou a resposta que eles deram aos seus filhos.
Assim, vejam o que os filhos e a escola foram capazes de construir, a partir da realidade deles.
Percebam o quanto era sério o que os filhos estavam perguntando para verem o quanto a Escola está mudando, ensinando agora, aos filhos dos produtores, agricultores, a valorizarem o trabalho, o território, os saberes locais.
Para criar um produto, a professora pode se valer de inúmeras técnicas e dinâmicas. Pode ser um gráfico das respostas, em coluna, em forma de torta; pode ser uma planilha; pode ser uma poesia; uma paródia; uma peça de teatro; um jogo pedagógico; um texto; uma exposição de fotos; um vídeo; um teatro de bonecos; mamulengo; um júri simulado; enfim, o que mais for apropriado para o tema, a hora e as condições.
Ao criar um produto, a classe vai comprovar que conseguiu fazer a elaboração do conhecimento; ao usar linguagens diferentes, vai comprovar que apreendeu. Ao mostrar às famílias, vai precisar mobilizar a comunidade, convidar os familiares. Sabe-se que não é fácil pai e mãe irem para a escola, por conta da tradição que se criou de que só são chamados quando há bronca com os filhos. A tarefa de convidar os pais e as mães é construída com os alunos: discutem as melhores estratégias para que compareçam, se fazem convite escrito, se visitam as casas em equipe para valorizar o convite, quais os argumentos que vão apresentar para que os pais não faltem.
A reunião não precisa ser na escola ou sala de aula, uma vez que há escolas que não oferecem condições melhores do que outros lugares na comunidade. A reunião precisa ser planejada, quem vai abrir, as pessoas que vão falar. As crianças aprendem a fazer isso com a professora. Reunir adultos numa comunidade não é coisa que se improvise; a improvisação é contra a metodologia, é sinal de desvalorização da participação das pessoas; os familiares precisam sentir-se importantes e valorizados pelo carinho e cuidado com que a escola prepara a reunião com eles.
Além dos objetivos já citados, os alunos precisam, com a professora, conduzir o debate para provocar os pais diante das descobertas feitas pelo estudo, pelo conhecimento produzido. Nos exemplos citados, se o estudo revelou que há tem gente sem terra, sem semente, gente sem plantar por falta de condições, se tem riacho contaminado, o que se vai fazer? Nessa provocação está uma das grandes originalidades da Peads: o novo papel que a Escola passa a ter, de repassadora de conhecimento a construtora de oportunidades; de provocadora do conhecimento sobre a realidade dos alunos, do território, de estimuladora do desenvolvimento sustentável.
Na apresentação dos conhecimentos, das conclusões que o estudo revelou, há também um discurso oculto, por detrás dos debates, que não precisa ser verbalizado. Podemos dar um exemplo.
Senhores Pais, vocês viram como os seus filhos estão aprendendo agora?! Estão aprendendo com os senhores! E aqui está a escola fazendo outro papel, estimulando os filhos e os pais a conhecerem mais nossa comunidade e nosso território! Vocês acham que vamos ficar de braços cruzados diante do que os filhos dos senhores colocaram para nós? Ou vamos fazer algo? Eles trouxeram alguns dados importantes sobre nossa comunidade, dados esses que nem sempre nós estávamos conhecendo bem? O que vocês acham?
A partir da primeira oportunidade, a Escola não será mais a mesma nem os alunos nem as professoras. Se se habituam a essa metodologia, a escola não vai se conformar só com a reunião com os pais, pois, possivelmente, alguns problemas identificados vão exigir outras articulações, para além da Secretaria de Educação, o que é outro salto de qualidade. Até então, os limites da escola eram os muros e as paredes, agora não, outras secretarias municipais e outras instituições passam a fazer parte do circuito da escola, da aprendizagem. Discute-se terra, semente, produções do inverno; possivelmente vão discutir algo com o secretário de agricultura, com o sindicato, com a associação e assim por diante. A Escola não se isolará mais da comunidade. A Escola Tradicional mobiliza uma comunidade quando precisa de algo para dentro: um conserto, uma reforma ou ampliação do prédio, a construção de uma horta. Na Peads, isso será consequência natural da mobilização em torno das necessidades identificadas pelos alunos com a comunidade. Ela passa a mobilizar para além de seus muros.
Aqui acontece uma grande diferença entre a Peads e outras experiências que tentam inovar a educação escolar. Outras alcançam muitos resultados, mas, para dentro, as professoras são capacitadas para dar melhores aulas, usar mais recursos pedagógicos, mas não para exercer outro papel fora da sala de aula. Seu papel reduz-se a desempenhar bem as tarefas de dentro e para dentro da escola.
A essa altura, o leitor relembra dos desafios que a equipe encontrava, diante de uma cultura que precisava ser mudada para que se mudassem a agricultura, as formas de produção, a relação com o meio ambiente. Tivemos de trazer esse desafio para dentro da metodologia, para dentro das técnicas e dinâmicas usadas na construção do conhecimento. Se conseguíssemos fazer as pesquisas, analisar os dados e devolvê-los para a comunidade sem provocá-la para uma ação, ou os próprios alunos com relação à Escola, a metodologia ficaria incompleta. Não estaríamos respondendo aos desafios sentidos anteriormente. Encontrávamo-nos diante da necessidade de levar as pessoas a assumirem novas atitudes, novos paradigmas, novas maneiras de trabalhar, de organizar-se, enfim, de operar mudanças nas mentes, nos corações e nas ações. A Terceira etapa da Metodologia é um momento privilegiado para essa provocação, esse questionamento, esse estímulo.
5.4.4 Quarta Etapa da Metodologia: autoavaliar e heteroavaliar os processos, os conteúdos, as pessoas envolvidas no processo de construção da aprendizagem e das ações
Depois de um processo tão intenso, o que vem depois é previsível: a avaliação. Só que essa avaliação não é só a professora que faz com os alunos, pois outros atores participaram do processo. A professora, a diretora e a merendeira também se autoavaliam; os alunos e os pais, igualmente. Todos são convidados a reverem os passos que deram, a participação que tiveram, as descobertas que fizeram, as lições que aprenderam, as falhas que cometeram. A avaliação não é só do produto final, dos conteúdos da aprendizagem, como também de todo o processo. Não é só cognitiva, é ética, vai verificar os valores, as atitudes que permearam o processo. Vai perguntar se os alunos estão crescendo na solidariedade, se os pais estão se fortalecendo nas iniciativas, se as professoras estão mais autodeterminadas, se as pessoas envolvidas passaram a acreditar mais nas suas potencialidades e aprenderam a utilizar mais os seus recursos.
Não se trata apenas de uma autoavaliação, como também de uma heteroavaliação. Os alunos vão ser julgados pela sua educadora, e esta verifica, ao longo de todo o processo, se aprenderam os conteúdos, se assumiram os valores. Para essas formas de avaliação, a professora pode usar inúmeros instrumentos. A Escola Tradicional, em geral, usa um só instrumento, que é a prova ou o teste. As pessoas tratam o meio como se fosse o fim, a ferramenta como se fosse o produto.
Os alunos também avaliam a professora; a metodologia que a ela usou; o tratamento que deu aos alunos, aos seus familiares, às suas dificuldades. A professora não é a dona da verdade, ela também é aprendiz na construção do conhecimento. As mães e os pais também podem não ter valorizado os filhos, a produção que os filhos construíram; podem não ter ido à reunião na escola; podem ter se comportado mal na reunião. Todas essas dimensões podem fazer parte da heteroavaliação que os alunos vão fazer sobre seus pais, como da autoavaliação, que os familiares poderão fazer de si mesmos.
A Peads, uma vez aplicada, deslancha um processo de construção coletiva e individual de conhecimento, de troca de saberes, de interação entre diversos sujeitos sociais. Todos esses atores vão precisar, para continuar crescendo, usar avaliação, planejamento, diagnóstico, pesquisa, análise. A organização de qualquer comunidade supõe o uso desses instrumentos. A Escola exerce o papel de produtora desses instrumentos, não só para os alunos, como também para os demais atores envolvidos. Quanto mais domínio de ferramentas e instrumentos, mais aptos estarão os atores sociais para agir.
Quando colocamos a avaliação numa quarta etapa, não é porque ela só apareça nesse momento. Ela, de certo modo, já está inoculada no momento em que a professora toma o dever de casa e em todos os momentos da divisão de responsabilidades. Da mesma forma, a pesquisa inicial continua inoculada, aparecendo nas outras etapas. As etapas não são necessariamente sucessivas, cronológicas, uma depois da outra. Podem ser assim, mas são, sobretudo, sucessivas ontologicamente, cada uma contendo dentro de si manifestação das outras três e tendo seu momento de culminância. A articulação entre uma e outra é orgânica e não mecânica, não é técnica, é metodologia, é um todo orgânico e sistêmico.
6 CONCLUSÕES
No momento de conclusão deste texto, as pessoas que vão trabalhar na sistematização da experiência já estão definidas e já começaram o seu trabalho nos três municípios escolhidos: Vicência, na Mata Norte do Estado de Pernambuco, área de cana-de-açúcar, de engenhos e usinas, que implantou a Peads a partir de 1998; Orobó, no Agreste de Pernambuco, em cuja área rural a predominância é de agricultores familiares mini fundistas, que começou a usar a Peads a partir de 2000, com o apoio do município de Vicência; e Pombos, na Mata Sul (transição com o Agreste), que começou em 2001, assistido pelo Serta.
Serão três regiões, três circunstâncias diferentes e seis escolas em cada município, no total de dezoito. Além da experiência nessas regiões diferenciadas, a Peads tem sido usada na Bahia, na Região Sisaleira e no Garimpo do Futuro; em Ariquemes, Estado de Rondônia, região amazônica. Pelo entusiasmo das primeiras iniciativas da sistematização, brevemente teremos publicados livros, materiais didáticos e CD-ROM para utilização em outras escolas e municípios. O Serta estará feliz em ter contribuído para que a Educação Rural seja uma realidade estudada, pesquisada e objeto da agenda de muitas professoras pelo Brasil e pelos demais países da América Latina.