Texto original escrito em 1997 para formação de professoras do PETI –
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil -. Tornou-se o texto mais usado
nas formações do Serta, o mais difundido de todos, estudado para entender a
importância da pesquisa.
INTRODUÇÃO
Esse texto é de outubro de 1998. Foi usado a primeira vez com monitoras do PETI. Depois passamos a usar com outros atores sociais: professoras, jovens, técnicos. Tornou-se uma referência para justificar a importância da pesquisa na construção do conhecimento. Revela também a importância do desafio, da necessidade e da dificuldade como fatores que impulsionam a busca, a vontade de mudar. Geralmente essas coisas têm sido encaradas como elementos negativos, que impedem o desenvolvimento das pessoas e das comunidades. O texto faz outra leitura, usa outra ótica. Desafio é para ser enfrentado, necessidade é para ser atendida, curiosidade é para ser respondida. O texto mostra como essa leitura foi a que a humanidade fez e acumulou ao longo de sua história.
Todo conhecimento se produz a partir de uma curiosidade ou de uma pergunta. Na sua base, está sempre a resposta a uma pergunta, a uma curiosidade, a um desafio. Isso acontece desde o conhecimento científico, desenvolvido nas teses de mestrado e doutorado, até ao conhecimento mais simples e espontâneo. A pergunta nem precisa estar formalizada, formulada, verbalizada ou escrita. Ela muitas vezes está implícita, não aparece. Mas a suposição é feita (será que…se, o que posso fazer…como fazer?). Às vezes fica só na imaginação. A curiosidade e o desafio provocam perguntas. Pode-se dizer que uma criança se desenvolve na medida em que satisfaz as suas curiosidades e passa a fazer perguntas.
Ao nascer, por instinto, sente fome e procura o peito da mãe. Acha gostoso e saudável. Daí por diante, vai pondo tudo o que pode na boca, se perguntando se é tão gostoso como o peito da mãe. Em seguida vai revelando curiosidade com as mãos; quero pegar, mas será que consigo pegar? Será que consigo sustentar? E assim, sucessivamente; será que posso alcançar? Será que posso chegar até tal lugar? Será que consigo dizer, falar como minha mãe? Será que posso ficar em pé?
Os adultos muitas vezes querem dispensar a criança de fazer perguntas sobre suas curiosidades. Por exemplo, perto do fogo, dizem: chegue pra lá, que queima. Mesmo assim, ela fica se perguntando, será que queima mesmo? Quero experimentar! Na primeira oportunidade que puder, ela chega perto para sentir e verificar se queima mesmo. Tudo isso é tão espontâneo, que acontece sem precisar a criança refletir sobre o processo. Ela faz de forma tão natural, como se não tivesse fazendo perguntas. Faz quase que por instinto. Mas o procedimento é de quem formula perguntas, de quem é desafiado diante de uma situação nova.
A humanidade cresceu assim, como as crianças, começando a fazer perguntas, respondendo aos desafios e desenvolvendo curiosidades. Nos períodos das cavernas, as mulheres e os homens ao jogar fora as sementes dos frutos que comiam, passaram a perceber que elas nasciam quando em terreno fértil. Passaram a se perguntar; e se a gente enterrar a semente, ela nascerá? Experimentaram, as sementes nasceram. Foi assim que começou a agricultura no mundo. Caçando, muitas vezes, matavam animais com filhotes pequenos e passavam a cuidar dos mesmos, dando comida e água. Observando, perceberam que os animais eram menos agressivos que os adultos. Perguntaram-se: será que poderemos criá-los? Será que se acostumam conosco ou voltam para as florestas? Alguns ficaram e foram se amansando. Foi assim que começou a pecuária no mundo. Para a humanidade dar esses passos, milênios foram necessários. A humanidade não tinha a consciência destas coisas como temos hoje. Viveram esta situação de forma espontânea.
Os outros animais da terra não tiveram curiosidades, nem puderam fazer perguntas, nem se sentiram desafiados como as pessoas. Por isso nunca evoluíram na sua condição de animal. O beija-flor jamais mudou a sua relação com as flores, a abelha também. O Leão nunca mudou a sua relação com suas presas, o gado nunca mudou sua relação com o capim. O homem ao contrário, mudou sua relação com as coisas, com a natureza, com os alimentos, com o clima, a temperatura. Pode construir ferramentas, armas, casas, plantar, transformar os produtos, produzir conhecimentos novos e inovadores, que lhe permitiram desenvolver uma cultura e interagir com a natureza. Assim, começou a cultura no mundo.
Se o homem não se fizesse perguntas, não encontrasse desafio, não desenvolvesse sua curiosidade, a humanidade estaria noutro estágio. Povo que não se faz pergunta, é povo atrasado e subdesenvolvido ainda hoje. Triste de quem não tem curiosidade e não se faz pergunta. Triste do município que não pergunta pelos seus recursos, pelas suas finanças, pelas suas possibilidades, pelos seus limites. Triste do Programa ou Projeto, que não ajuda as pessoas, executoras ou beneficiárias, a fazer perguntas, a desenvolver curiosidades. É lamentável que as pessoas se acomodem apenas às coisas iniciais, aos benefícios aparentes. É como a criança que se acomodou a por na boca apenas o peito da mãe, porque era gostoso, nutritivo e saudável. É como as pessoas que se acomodaram simplesmente com a Bolsa dos Programas Sociais, a melhora da comida das crianças ou outros benefícios. Mas pararam por aí. Estas pessoas não aproveitaram do Programa para fazer mais perguntas sobre suas crianças, seus adolescentes, suas famílias e comunidades, seus municípios, os recursos etc. É como se no tempo das cavernas, as pessoas não tivessem observado as sementes que nasciam e os animais que se amansavam.
Se as pessoas, as comunidades, os municípios não fazem perguntas sobre sua história, sobre as causas da sua pobreza, sobre as alternativas que podem construir, se não apresentam curiosidade sobre estas coisas, é porque estão muito mal. Dificilmente se desenvolverão. Viverão sempre a mercê das curiosidades alheias. Não descobrirão nem seus recursos, nem seus limites. Estarão apenas na fase do mamar. Mama uma ajudinha daqui, outra de lá, um “Bolsa Família” hoje, amanhã outro programa social! Depois de amanhã, uma “Cesta Básica” nas eleições. Depois mais outro! Só comendo o peixe, sem aprender a perguntar se pode também aprender a pescar, usar anzol, rede.
Se uma criança desde o berço desenvolve curiosidade e enfrenta desafio e obstáculos, faz perguntas e se faz pergunta, de forma espontânea ou não, podemos imaginar quando esta mesma criança estiver na fase escolar, o quanto de capacidade já não tem de fazer perguntas! Nossa tradição autoritária sempre abafou a curiosidade das pessoas, tratou como sinônimo de “atrevimento, enxerimento, mau costume”.
A escola tradicional tem sido repressiva ao desenvolvimento das perguntas. A contradição é maior, porque é exatamente ela, que deveria estimular as crianças a formular e desenvolver perguntas. Paulo Freire diz que a escola deveria aproveitar a “curiosidade espontânea” do educando e transformá-la em “curiosidade epistemológica (científica)”. Isto é, o que a criança faz de forma tão natural, tão a vontade, tão espontaneamente, a escola deveria ajudá-la a fazer de forma técnica e científica, sabendo os porquês, apropriando-se do processo. O SERTA está propondo assim, fazer com que a escola não só faça perguntas, como ajude outras pessoas e instituições a fazerem. Por isso que Pesquisa, vira dever de casa nesta Programa.