3.1.6 APRESENTAÇÃO DA PEADS PARA UDIME

O foco dessa apresentação é abordar a Educação do Campo a partir de um en-foque filosófico. Vamos nos perguntar: A escola como instituição, lugar e espa-ço da construção do conhecimento é para que? Serve para quem? Conheci-mento é para que? Conhecimento é para quem? A aprendizagem é para que? Aprendizagem para quem? São perguntas aparentemente simples. Imaginamos que temos a resposta imediata. Porém queremos mergulhar mais a fundo.
Quem apresenta respostas a essas perguntas?

A sociologia responde ao como se aplicam (escola, conhecimento, aprendiza-gem), como se vivenciam, quais as constan-tes desses fenômenos em tal época da histó-ria, em tal povo, em tal nação, região. A sociologia constata, identifica, verifica, ofe-rece dados e informações para a análise, para avaliação.

A psicologia responde ao como se aprende, como se ensina, quais as formas mais adequadas, eficientes, eficazes. Como se processa nas pessoas, no cérebro, na mente, nas emoções o ensino, a aprendiza-gem.

Vamos perguntar por um momento a sociologia: o que se constata a respeito da educação do campo? Entre outras tantas constatações, podemos dizer que:

A escola preparou e ensinou a criança a migrar.
Ensinou que ser feliz, é morar na cidade, na sede do município.
Que viver de agricultura é negócio para quem não teve outra chance, para quem não estudou, para quem não pode sair, para quem não foi empreendedor e ousado.
Que viver do campo e no campo é igual a “penar no cabo da enxada, é puxar cobra para seus pés e riqueza para os pés dos outros”, “se a criança não estuda, vai ter-minar feito o pai, no cabo da enxada, na dureza”.
Que viver da agricultura ou morar no cam-po é negócio para matuto, brocoió, pé ra-pado, pé rachado etc.
Quem teve ou tem iniciativa, quem ousou ou ousa vai procurar saída em outro canto mais desenvolvido.
A sociologia mostra, verifica, cons-tata, analisa que por trás do ensino, da aprendizagem, da produção de conhecimen-to existe o que os pesquisadores chamam de Currículo Oculto. Isto é, que junto com os conhecimentos das letras, dos cálculos, da gramática, da leitura, da escrita, da geogra-fia, da história, das ciências sociais e exatas, dos códigos escritos, de uma maneira ocul-ta, escondida, velada, protegida existe um outro currículo.

Esse outro currículo é formado pelos valores, pela ética, pelas crenças. São as opções filosóficas que os grupos de maior força, de maior poder, de maior influência, conseguiram colocar nos processos formati-vos, na escola, na produção do conheci-mento, nos currículos, nas leis, nos decre-tos.

Esses valores, essas opções filosófi-cas já são predominantes na cultura e são reproduzidas pelas escolas.
Na medida que são reproduzidas, a escola alimenta e se retroalimenta desses valores. Desenvolve e fortalece o Currículo Oculto.

A Psicologia como a sociologia tem uma contribuição para nossa conversa. Ela não responde a pergunta para e porque se aprende, mas como se aprende e se ensina. A psicologia revela como o conhecimento dos códigos escritos, como os ensinamentos do currículo explícito dirigem-se ao consci-ente da pessoa, ao intelecto. Os alunos e alunas aprendem, muitas vezes só decoram as fórmulas. Por falta de uma elaboração própria, por falta de um exercício contínuo, as pessoas esquecem.
A psicologia mostra também que os valores, os ensinamentos do currículo ocul-to se dirigem mais ao inconsciente das pes-soas. Entram por osmose, pela convivência, pela vivencia, pela cultura, e não tanto pela docência.

Os psicanalistas vão mais longe para nos explicar, que o inconsciente, sobretudo o formado na infância é o responsável mai-or pelos nossos comportamentos, sentimen-tos, emoções, relacionamento etc. O que entra pelo consciente, com facilidade es-quecemos e o que penetra no inconsciente, carregamos por muito tempo ou pela vida toda.

Em outras palavras, o currículo ex-plícito dirige-se ao consciente e esquecemos com facilidade, o currículo oculto dirige-se ao inconsciente, dificilmente esquecemos e esse é quem determina mais o comporta-mento.

A criança da escola do campo es-quece contas de matemática, regras de gra-mática, fatos da história, lugares da geogra-fia. Porém não esquece os valores que pas-saram para ela na escola, durante a infância e adolescência que:

Que felicidade está na cidade,
Agricultura não veste camisa,
Fica no sítio quem não soube se desenvol-ver,
Que ser do sítio é ser maturo sem futuro, sem condições de progresso.

 

Primeira conclusão: explicitar o currículo oculto

A escola do campo precisa explicitar esse currículo oculto. Precisa analisá-lo. Precisa identificar quais valores estão transmitindo. Precisa verificar se esses valo-res fazem bem as pessoas, se ajudam a au-to-estima, a autoconfiança, a identidade. Precisa investigar se contribuem para de-senvolver as potencialidades das pessoas, dos recursos locais, dos recursos naturais. Precisa julgá-los se são capazes de construir cidadãos e cidadãs ativos, participantes, solidários, autônomos, empreendedores.

A questão do currículo explícito é uma segunda questão. É subordinada a pri-meira. Insisto nisso porque em geral, as aná-lises feitas são sempre sobre o currículo explícito, não atingem a questão do papel da escola, não alcançam as questões e as op-ções filosóficas.

Já cometemos equívocos graves e bem recentes nesse sentido. Na década de 70, 80, houve um esforço do MEC, das universidades e das secretarias estaduais da educação em produzir cartilhas e livros di-dáticos para a educação no campo.

Foram escritas nove. Marlene Rodri-gues faz uma análise de todas e comprova exatamente o equívoco. Usaram as palavras, o código escrito, o universo vocabular da vida rural, mas deixaram fora todo o conte-údo filosófico. Pegaram um instrumento que Paulo Freire desenvolveu, a pesquisa do universo vocabular do campo e usaram para identificar as palavras, as expressões, os sons, a fonética, as sílabas e letras. Porém descontextualizaram dos elementos filosófi-cos que Paulo Freire usava.

Hoje que estamos com a Educação do Campo legitimada em LDB, diretrizes curriculares, diretrizes operacionais, planos de educação é de fundamental importância estarmos atentos ao que aconteceu e ao que pode acontecer.

Muita gente vai introduzir disciplinas sobre o campo, tipo práticas agrícolas, edu-cação ambiental, educação cooperativista, e pensar que com isso, estarão desenvolvendo educação do campo. A educação do campo não é por aí que começa, vai chegar aí, mas depois que passar por uma concepção do papel da escola no campo.

Para que é a escola no campo, para que e para quem ela vai servir? Quais valo-res ela vai construir nos alunos? Ela vai conseguir que o aluno/a acredite na sua ca-pacidade, na capacidade de seus familiares, nas potencialidades do seu meio, na força de sua cultura, na importância de sua iden-tidade?

Quem vai responder a essas pergun-tas? Não é a sociologia, nem a psicologia. E sim a filosofia, por que é uma questão de escolha ética, de opção política. Para que queremos a escola no sertão? Para que que-remos a escola no agreste, na zona da mata? O que queremos fazer com ela? Quais mu-danças ela será capaz de produzir nas pes-soas, nos alunos/as e nas professoras/es?

Segunda conclusão: a necessidade de um projeto político-pedagógico.

Para explicitar bem e melhor o papel da escola, precisamos nos perguntar para que vamos educar. Para que tipo de socie-dade, para viver em qual região? Vamos educar as pessoas para fazerem o que? Aonde? Quando? Com quem?

Como a secretária e a equipe muni-cipal vão saber definir o currículo escolar se não sabem para onde o município quer ir, para qual sociedade, a população quer cons-truir? Qual o projeto para os próximos cin-co, dez, quinze, vinte anos da nossa região, do nosso município, da nossa comunidade, da nossa escola?

Se não sabemos, as pessoas, as insti-tuições, as ongs envolvidas com a educação do campo estão propondo perguntar: para onde vamos? Qual o futuro das nossas co-munidades? Vão desaparecer? Vão virar desertos? Vão virar jardins? Vão produzir sustento para seus moradores? Como vão ficar as águas? A cobertura vegetal? Os animais silvestres, os pássaros, as pessoas, as lavouras e as propriedades? Como vão ficar nossos poetas, nossos escritores, nos-sos artistas, nossos artesãos?

Em outras palavras, qual modelo de desenvolvimento estamos querendo para nosso lugar? Não sabemos responder? Claro que não temos essa resposta pronta. No momento pode ser até positivo não ter res-posta para essa pergunta. Pois não pergun-tamos ainda as pessoas, aos jovens, as cri-anças, aos trabalhadores, as mulheres, as professoras/es, aos gestores, aos excluídos e incluídos.

Estamos diante de uma tarefa e de uma proposta da educação do campo. Que ótimo seria a escola empenhar-se em fazer essas perguntas, em construir junto com os alunos/as, com as crianças, com os adoles-centes, com as famílias, com as professoras, com as gestoras!

Que ótimo a escola perguntar pelo futuro de suas comunidades. Perguntar pe-los conhecimentos que precisam para se desenvolver, pelos valores que vão estimu-lar as pessoas a melhorarem as condições de suas vidas.

Que ótimo os municípios passarem a construir seus projetos políticos, pedagógi-cos, estratégicos para os próximos 10, 15 anos com a participação dos alunos em cada comunidade, família, escola.

Terceira conclusão: a necessidade de uma visão de mundo.

Hoje temos um confronto entre duas visões de mundo. Uma que considera a pessoa humana como acima da natureza, como fora dela, utilizando-a e moldando-a de acordo com suas necessidades e interes-ses. Uma segunda, que considera a pessoa dentro, fazendo parte da natureza, reco-nhecendo, facilitando e estimulando as leis da natureza. Essas duas visões também correspondem a dois paradigmas básicos de fazer ciência e de produzir conhecimen-tos.

A primeira explora a natureza, tira o que pode sem se perguntar pelas conse-qüências, não pergunta como a natureza gostaria de ser tratada. Tem uma relação de senhor e dominador. A segunda tem uma relação de amante, de amigo, procura saber como a natureza gosta de ser tratada, quais são suas leis, onde e como se pode mexer com seus elementos, como o solo, a água, a vegetação, o ar, o vento, a temperatura funcionam, quais as leis que as regem.

De acordo com a visão de mundo, vamos pensar nosso projeto político peda-gógico. Por exemplo, a primeira, se precisa de lenha, desmata e vende, sem perguntar pelo futuro, pelas gerações que virão, sem perguntar pelo papel que a vegetação exer-ce. Só enxerga a necessidade do homem, da mulher do momento. Não pergunta pelo que a natureza gosta, pelas suas leis. Ver as árvores apenas como um componente de madeira sobre o solo. Não percebe que as árvores são muito mais que isso, são rela-ções com os animais, com as abelhas, com os microorganismos, com o clima, com as águas, com a temperatura, com a produção de oxigênio, com a destinação da água para o lençol freático.

De acordo com a segunda visão, observa-se todas essas dimensões e pergun-ta como a natureza é formada, como ela gosta de ser tratada. E aí a resposta a ne-cessidade de lenha é dada de outra forma, é com o plantio, com o manejo da caatinga, com a silvicultura, com a agrofloresta, com a agricultura orgânica ou a permacultura, é com a mobilização da escola para identifi-car a diversidade biológica do sertão. A segunda leva em conta que não é só com um tipo de vegetação, mas com a varieda-de, sobretudo das espécies nativas.

O diagnóstico da realidade modifi-ca-se a partir da visão de mundo que as pessoas tem. Um diagnóstico pode ver a mesma realidade do nordeste e dizer que nosso problema é dinheiro, é água, é proje-to, é tecnologia, isto é, tudo que depende de fora, dos outros, dos grandes.

Outro pode ver que o nosso pro-blema passa pela cultura de dependência que se criou, pela falta de uso racional dos recursos locais, pela auto-estima e autocon-fiança das pessoas, pelo manejo dos recur-sos naturais, pela relação que as pessoas mantêm consigo mesmas e com a natureza.

Concluindo

Podemos dizer que essas conclusões são, sobretudo de ordem filosófica, de op-ção ética e política. Sem perguntar por um novo, diferente e inovador papel da escola na educação do campo, sem perguntar pe-los valores que são construídos na vivência e docência da escola, sem perguntar por um projeto político pedagógico para nossos municípios, sem perguntar por uma visão de mundo diferente da que herdamos, nos-sos esforços vão ficar apenas nas aparên-cias, nos fenômenos.

Correremos o risco de perder a grande oportunidade histórica de rever o papel da escola, de rever o currículo oculto, de repensar as bases e os paradigmas filo-sóficos e científicos. Correremos o risco de falsear ainda mais a realidade, de mostrar que estamos mudando alguma coisa para não mudar o que é essencial e necessário. Correremos o risco de mais uma geração de CERUs, que se urbanizaram e fugiram da proposta original de serem centros de edu-cação rural, pelo fato de serem construídos, instalados, equipados, sem que a comuni-dade escola e local, se apropriar-se de uma nova filosofia.

A grande pergunta que certamente muitas pessoas fazem depois do que foi dito e escrito até aqui, é que essa reflexão é muito bonita, mas e agora, como efetivar?

Evidente que para isso, fomos obri-gados a nos munir, nos instrumentalizar com uma metodologia que fosse capaz de aplicar as dimensões do cotidiano, da sala de aula, dos materiais didáticos, das disci-plinas estudadas, essas dimensões filosófi-cas.

Depois de testadas, executada, va-lidadas estão sendo sistematizada e agora disponibilizadas para os municípios do ser-tão do Pajeú, através do projeto Dom Hél-der Câmara de Convivência com o Semiá-rido. Para os municípios do São Francisco e Itaparica através do Projeto Educar. E ul-timamente sendo negociada para os onze municípios do menor IDH do agreste me-ridional e sertão do Moxotó, via Secretaria de Educação. Há porém uma exigência básica, que seja assumida como opção polí-tica dos gestores e lideranças locais.

Abdalaziz de Moura – SERTA

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