QUE É O SERTA - SERVIÇO DE TECNOLOGIA ALTERNATIVA
E O QUE É A PEADS – PROGRAMA EDUCACIONAL DE APOIO
AO DESENVOLVI-MENTO SUSTENTÁVEL.
E O QUE É A PEADS – PROGRAMA EDUCACIONAL DE APOIO
AO DESENVOLVI-MENTO SUSTENTÁVEL.
Texto para o livro “Múltiplos Saberes de Uma Prática Pedagógica”, sistematização
da prática da Peads em municípios da Zona da Mata Norte, Mata Sul e
Agreste Setentrional – 2005, coordenada pela Professora Socorro Silva da
UNB, atualmente na UFCG-PB,
Entre 1987 e 1989, vários técnicos em agropecuária, recém-formados fizeram estágios no Centro de Capacitação e Acompanhamento aos Projetos Alternativos da Seca – Cecapas, órgão da Conferência dos Bispos do Nordeste II em Pesqueira – PE. Passavam dois meses internos, convivendo com os técnicos instrutores e os agricultores que iam fazer capacitação em agricultura orgânica, apicultura, piscicultura, caprinocultura, plantas medicinais, nutrição alternativa. Eram quatro jovens cada vez. Concluído o período de dois meses, voltavam às suas casas para dar lugar a novos candidatos, pois só comportava quatro vagas, às vezes, conseguiam trabalho a partir do estágio.
A partir de 1988, em vez de retornarem às suas famílias, os que aceitaram, passaram a estagiar com famílias de agricultores de Pernambuco e Paraíba. Era um período de mais dois meses. Período esse que para alguns, se transformou em anos. Tanto os agricultores como os técnicos gostaram tanto da experiência, que ampliaram seu tempo de estágio. Por questões internas da Igreja Católica no Nordeste, o Cecapas finalizou suas atividades em dezembro de 1989 e os estagiários como as famílias quiseram continuar desenvolvendo o trabalho de difusão das tecnologias alternativas para a agricultura orgânica. Parte dos agricultores já atuava nas pastorais, nas Comunidades Eclesiais de Base, nos sindicatos e cooperativas.
Mesmo discutindo várias temáticas, o grupo formado por agricultores e técnicos sentia necessidade de encontrar mais tempo para aprofundar questões mais específicas de suas propriedades, tais como o planejamento do inverno, a melhora do rebanho, a integração com o meio ambiente. Esses assuntos não encontravam muito espaço nas reuniões tradicionais. As reuniões eram mais sobre aspectos políticos, religiosos, organizativos, educativos. Falava-se muito da “distribuição das riquezas” e quase nada sobre “a produção das riquezas”. O grupo queria ter mais tempo para conversar sobre questões da produção, das tecnologias. E também sentia necessidade de ter mais autonomia das instituições centralizadas fora do lugar onde viviam.
Conversar sobre o rebanho, a alimentação, a saúde, a reprodução, as doenças, o custo dos animais exigiam tempo. A mesma necessidade acontecia com o planejamento das propriedades, a distribuição do terreno, a ocupação dos espaços com fruteiras, vegetação nativa, pastos, plantio permanente, plantio temporário, os recursos humanos, econômicos, ambientais. Os envolvidos construíam conhecimentos novos sobre esses temas, estudavam, formavam outros produtores e técnicos. Criavam tempo para essas necessidades. Por outro lado, sentiam que sua atuação na igreja estava perdendo a autonomia conquistada anteriormente com os padres e bispos progressistas.
No dia 3 de agosto de 1989, o Serviço de Tecnologia Alternativa – Serta foi criado para responder a essa necessidade. Os técnicos e agricultores viviam nos municípios de Tacaimbó, Gravatá e Chã Grande no Agreste Central e em Surubim, Orobó, Bom Jardim e João Alfredo, no Agreste Setentrional. Era um movimento pela valorização da agricultura, do meio ambiente, das tecnologias alternativas e pela participação dos agricultores nas decisões sobre o meio rural. Nessa época a desvalorização da agricultura havia chegado ao fundo do poço, por conta da inflação. Os agricultores vendiam terra e gado para por o dinheiro na poupança, pois parecia muito mais compensador.
Essa situação provocava crise de identidade para os técnicos e os agricultores. Afinal de conta, aonde iria parar a agricultura? Qual seria o seu futuro? Teria sentido os jovens continuarem batalhando por algo que se apresentava sem futuro? Quando os técnicos estavam se animando com uma comunidade, tomavam conhecimento que tal agricultor vendeu sua propriedade, que a pessoa que comprou ia comprar a do vizinho, que outro também estava pensando em vender. Enquanto isso, os fazendeiros maiores, só com os juros do seu dinheiro aplicado, compravam as propriedades pequenas do entorno. Isso acontecia inclusive com agricultores que passavam a usar as tecnologias alternativas.
Além dessa crise econômica e de perspectiva, no mundo aconteciam as mudanças dos países socialistas europeus, que de uma forma ou de outra, inspiravam os movimentos sociais e as pastorais da igreja católica. Era como se o sonho de uma revolução popular, de um projeto de sociedade justa, da teologia da libertação tivesse ruído. O Serta foi criado no dia 3 de agosto e no dia 11 de novembro derrubaram o muro de Berlim. As matrizes ideológicas e teóricas sobre as quais havíamos sido formados passavam por profundos questionamentos. O neoliberalismo expunha suas garras como se tivesse comprovado o fracasso do socialismo. Era muita coisa para repensar, o futuro da agricultura, dos agricultores e o dos técnicos.
O Serta foi criado instigado por alguns desafios. Um desafio de ordem epistemológica, saber qual seria o futuro da agricultura familiar com a abertura da economia, com o avanço do neoliberalismo, se sobreviveria, de que forma. Outro desafio era de ordem prática, o que poderíamos fazer nessas condições para melhorar esse cenário, se nossas possibilidades eram tão poucas e como fazer para conseguir intervir sobre esse quadro. Um terceiro desafio era de ordem ética e existencial, qual era a nossa posição nesse contexto, que valores precisávamos acreditar para conseguir fazer acontecer as ideias sonhadas. Não tínhamos a clareza que temos hoje sobre esses desafios. Mas sentíamos e queríamos superá-los.
Não podíamos nos sustentar com tanto desafio. A partir do ano seguinte, 1990, passamos a estudar a história da Agricultura Familiar no Brasil, para ver se encontraríamos alguma pista. Estudamos qual foi seu papel no ciclo da cana, do gado, do algodão e da urbanização. Numa segunda parte, como a Agricultura Familiar era considerada pelos partidos políticos, pelas pastorais das igrejas, pelas ONG, pelos sindicatos de trabalhadores rurais. Concluímos que além da AF ter exercido um papel subordinado nos diversos ciclos econômicos, ainda era considerada pelos movimentos sociais sem muita perspectiva nas mudanças desejadas e sonhadas por eles.
Essa conclusão nos levou a fazer algumas propostas para repensar o papel da agricultura não só com aqueles autores e agentes sociais que estávamos acostumados a trabalhar – Sindicato de Trabalhadores Rurais, Comunidades Eclesiais de Base, associações e cooperativas de agricultores. Sentíamos a falta da posição e do papel dos governos municipais, estadual e federal em relação a AF, das empresas, dos consumidores e clientes, dos fornecedores. Era como se só uma parcela pequena da sociedade se relacionasse com a agricultura. Percebíamos uma grande contradição em as prefeituras lavarem as mãos sobre os grandes problemas, tais como terra, produção, solo, abastecimento, educação e saúde.
A partir desse estudo o Serta deu um salto de qualidade quando ampliou seu grupo de interlocutores aos gestores públicos, aos consumidores, aos funcionários públicos, os ambulantes e comerciantes. Achávamos os problemas da agricultura grande demais para suas soluções pertencerem só a grupos pequenos. Seria necessário muita gente opinar, propor, discutir para que houvesse solução para tantos problemas. A partir dessas conclusões passamos a perceber nosso papel não só como animadores das comunidades, capacitadores em tecnologias alternativas, defensores do meio ambiente, inovadores no planejamento das propriedades rurais. Passamos a nos ver pensando o desenvolvimento rural.
Em 1992, o Serta por ocasião das eleições municipais produziu um segundo estudo, Sugestões para um Plano Diretor de Desenvolvimento Rural, desdobramento do estudo do ano anterior, A pequena produção no Nordeste, a eterna marginal. Pensando o desenvolvimento rural, tivemos de repensar também os modelos de desenvolvimento da comunidade, do município, do estado e do país. Foi um salto do micro para o macro, da tecnologia para a política, do projeto para o programa, da propriedade para o país, do privado para o público. Passamos a nos ver não apenas como construtores de conhecimentos técnicos, intervindo sobre as propriedades, como também, agindo na política, modificando cultura.
Entre os novos interlocutores que escolhemos para nos ajudar na tarefa de interferir para conquistar mudança de cultura, de paradigma, de jeito de governar e se desenvolver, estava a escola pública municipal. Passamos a nos interessar pelo que a escola ensinava aos alunos do meio rural, pelos valores que ela conseguia incutir nas crianças e adolescentes, pelos modelos que inspiravam. Antes, nenhum movimento do campo na região preocupava-se com o que acontecia na escola e o que ela ensinava. Havia um consenso tácito que a escola era tão universal e tão genérica que não precisava se adequar ao campo. Nem a cultura, nem a legislação fazia alguma diferença entre escola do campo e da cidade.
Não se questionava o fato da escola do Rio Grande do Sul, do Amazonas ser igual a do Agreste de Pernambuco. Era para ensinar a ler, escrever e calcular. O seu papel era de repassar o ensinamento e os valores da cultura para os alunos. Mesmo quem queria mudar os valores e as crenças deixava a escola de lado. Preferia usar estratégias da Educação Popular, pois nessa, havia liberdade de escolha do ensino e da aprendizagem. Na EP, como o Serta mesmo fazia, se ensinava o que as pessoas precisavam aprender para melhorar as condições de vida. Isso se fazia de acordo com as condições de cada grupo, de cada lugar. Na cidade se aprendia uma coisa, no campo outra.
No Amazonas os educandos da EP aprendiam a defender o uso racional das florestas, a empatar os piquetes dos grileiros de terra, a valorizar sua identidade e sua cultura. No Recife, as pessoas dos bairros da periferia aprendiam a lutar por transporte, por habitação, por água e serviços urbanos. No Agreste de Pernambuco, as pessoas aprendiam a evitar o avanço do capim, o avanço da criação de cavalos de raça, a produzir melhor para ter um preço compensador para seus produtos. E assim em cada lugar do país ou da América Latina. Mas na escola ninguém pensava diferenciar. Era como se a escola tivesse no lugar certo, ensinando a fazer o certo, transmitindo os valores corretos.
Mas, na necessidade de descobrir caminhos para pensar o desenvolvimento, o Serta terminou examinando essa questão de perto. Começou a pesquisar o que os estudantes do meio rural aprendiam nas escolas, o que eles levavam da vida familiar para as leituras, os textos, os cálculos e o que traziam do seu aprendizado que pudesse aplicar ao trabalho e a vida familiar, a propriedade. Começamos a pesquisar com os adolescentes os livros didáticos das escolas, os cadernos de anotação que eles escreviam. Até aí, nós íamos nos surpreendendo com a distância entre uma situação e outra. Pensávamos que poderíamos contornar tudo isso se conseguisse melhorar os livros didáticos, os textos, os exercícios.
Porém, nos deparamos com surpresa maior, quando pesquisamos quais eram os valores que a escola passava para os alunos/as do campo. Além de perguntar pelo que o educando da quarta série do fundamental deveria conhecer, perguntamos também em que ele deveria acreditar. Isto é, ao concluir a quarta série, ele acreditava que era um sujeito de direito ou de favores? Acreditava que poderia modificar o seu futuro ou permaneceria na situação que estava? Acreditava na força do que aprendeu ou achava que o ensino não ia adiantar para melhorar de vida? O que o filho pensava do seu pai agricultor? Era um pobrezinho, coitadinho, que só mudaria algo se tivesse um padrinho, ou tinha potencial a desenvolver?
Nesse aspecto foi que fizemos a descoberta mais grave da história do Serta. Descobrimos que a escola exercia um papel estranho com o jovem e a jovem do campo. A escola preparava o aluno/a para abandonar o campo, como se o campo não fosse um lugar e espaço de felicidade, como se só a cidade ou outras profissões fossem capazes de fazer as pessoas felizes. A escola não construía a identidade do filho do agricultor com autoestima. Estigmatizava a origem do pai como se fosse castigo e fatalidade. Argumentava com frequência “estuda menino, se não tu vai terminar feito teu pai, no cabo da enxada!” Em troca do código escrito, a escola destruía no inconsciente do aluno a sua identidade.
Três anos mais tarde, em contato com diversos autores, soubemos que a esse fenômeno dava-se o nome de “currículo oculto”. Passamos a aprofundar essa questão e descobrimos que a escola passa não só conteúdo escrito no seu currículo, como passa também sua filosofia, as concepções que tem do mundo, das pessoas, do aluno, do agricultor, da terra, da história, do conhecimento. Em outras palavras, passa suas crenças, seus valores. Os alunos aprendem conhecimento e valores. Só que os conhecimentos se dirigem ao intelecto, fica até fácil de esquecer. Mas os valores ficam no inconsciente. O menino/a termina a escola, fica adulto, vira pai de família e carrega o ensinamento.
Diante de tais descobertas, íamos fazendo novas perguntas. Mas será que existe possibilidade da escola ensinar outros conteúdos? De ligar mais os conteúdos da escola com o da vida cotidiana dos jovens, da família, do trabalho? De relacionar os saberes escolares, técnicos, acadêmicos com os saberes populares que os pais e as mães dominam? Do conhecimento da escola servir para as famílias se conhecerem mais, conhecerem o seu lugar as suas potencialidades, os seus limites e as estratégias de superação? De o conhecimento escolar servir para o município e as comunidades superarem os limites da pobreza extrema e alcançar o desenvolvimento?
Seria possível a escola exercer o papel contrário em relação aos valores que passava aos alunos/as? Isto é, haveria oportunidade de em vez de a escola baixar a autoestima, a autoconfiança dos alunos, elevá-las? Em vez de desmerecer a agricultura, entender a sua história, as suas raízes e contribuir para que os agricultores e seus filhos superassem o estigma de que “são matutos, ignorantes, pobrezinhos, coitadinhos, incapazes de fazer as mudanças, dependentes dos líderes?” Haveria chance de explicitar os valores do currículo, de deixar de ser oculto, de revelar a que veio, se para acomodar os pobres na sua pobreza, ou para contribuir com sua mudança de vida?
Essas perguntas sobre os conteúdos e o papel que a escola exerce no meio rural iam abrindo nossa mente e nos revelando aos poucos estratégias de superação. Enxergávamos luzes ao fim do túnel. Apesar de não termos experiência com escola, possuíamos experiência no campo da Educação Popular, da educação não formal. Pessoalmente, eu já acumulava 25 anos de experiência como educador no meio não formal. Os outros membros da equipe eram mais jovens. Começamos a perceber que muita pergunta que fazíamos, tinha uma luz na Educação Popular. Nessa construíamos exatamente com as famílias e comunidades conhecimentos novos, tecnologias inovadoras, ferramentas úteis para a mudança de vida.
E quanto aos valores, era exatamente o miolo da EP. Na EP trabalhávamos com muitas pessoas analfabetas, pobres, desacreditadas das suas potencialidades e capacidades, pessoas que temiam falar nas reuniões, por que se achando analfabetas, pensavam que não construíam conhecimentos. Nosso desafio era vencer esse preconceito, fazer com que as pessoas acreditassem em si, usassem a sua própria palavra, pois sua palavra era única, só elas poderiam expressar. Os resultados eram gratificantes. Em pouco tempo, com encontros semanais, víamos pessoas apropriar-se dos conhecimentos e das crenças, aplicarem ao seu cotidiano, utilizarem na sua vida de família e de trabalho.
Diante de tudo isso, fizemos uma aposta. Se houver interação entre a EP e a escola que temos, construiremos a escola que queremos. Vencemos essa aposta. Fizemos essa interação. Passamos a fazer dessa tarefa o nosso campo maior de atuação. Desenvolvemos os princípios filosóficos necessários para esse desafio, construímos uma Metodologia que deu conta da aplicação dos princípios, desenvolvemos um sistema de capacitação, com conteúdos de ensino e aprendizagem, encontramos mil dinâmicas e técnicas que favoreceram a aprendizagem desses conteúdos e encontramos formas de transformar todo esse processo em ações concretas dentro e fora da escola.
A partir de 1999, com a ousadia de alguns gestores e gestoras públicas, a Proposta foi assumida por secretarias municipais como a Programa Educacional dos municípios. Passou a ser interativa ou alterativa e não mais alternativa. Ou seja, não era mais uma proposta de Ong, que o município abria uma ou outra brecha para ser conhecida pelas escolas. Passou a ser a Educação Municipal. Hoje está sistematizada, validada pelos resultados que alcançou, legitimada pela publicação das Diretrizes Operacionais da Educação do Campo em abril de 2002, e outros resoluções, decretos, programas e políticas públicas como Educação do Campo.
A sistematização dos Princípios Fundamentais e da Metodologia encontra-se no livro de minha autoria Princípios e Fundamentos da Programa Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, Serta 2005, segunda edição, Recife-PE. Até aqui o Serta não desenvolvia atividades específica com a juventude. Essa começou no ano 2000 quando o Serta recebeu o convite para desenvolver o Programa “Aliança com os Adolescentes pelo Desenvolvimento Sustentável” na Bacia do Goitá, zona de transição entre a zona da mata de Pernambuco e o Agreste. Em Glória do Goitá o Serta descobriu o “Campo da Sementeira”, área do Ministério da Agricultura, desocupada há 10 anos, em comodato com a Prefeitura.
A experiência de formação com os jovens provocou muitos impactos no Estado e no Nordeste. Tornou-se uma referência importante para o trabalho com jovens. Em 2005 ampliou-se aos municípios do semiárido, com outro campus em Ibimirim, em instalações antigas do Dnocs, no Povoado Poço da Cruz. A partir de 2009, a formação dos jovens passou a ser reconhecida como profissional de nível médio, através do Curso Técnico de Agroecologia.
Essa história tem muito mais detalhes que podem ser complementados em classe ou através de outras leituras, de livros e textos, como por depoimentos das pessoas que conviveram em um desses momentos com o Serta.