Texto para o primeiro seminário com as professoras envolvidas no
processo de Sistematização da PEADS – 15/04/03. Esse texto tem
sido muito usado oficinas de formação de professoras, pelo seu
tamanho reduzido e profundidade da temática.
Entender bem o papel da escola é um ponto que toda professora envolvida na PEADS precisa dominar. O objetivo deste texto é aprofundar mais esta questão, observando as consequências práticas de uma escolha filosófica, metodológica. Entendendo bem qual o papel da escola, vai ser fácil para a professora a escolha do currículo, das técnicas e dinâmicas usadas no cotidiano. Trata-se de entender bem o papel que a escola tradicionalmente exerceu no meio rural diante das pessoas, dos alunos, das professoras, das famílias, das instituições.
Em outras palavras: o que a escola significava para os alunos, as professoras, as famílias e a comunidade e o que passa a significar na PEADS.
Quando falamos do papel exercido pela escola na PEADS, queremos falar do significado, da função pedagógica, social, política que a escola exerce. Outra maneira de colocar a questão é perguntar sobre o para quê e o porquê da escola. Esse é um dos maiores diferenciais do SERTA e da PEADS. Não se trata agora de saber o como é a escola, como é o ensino, como é a didática, o como se ensina, como se avalia. Essas perguntas são sobre os meios e não sobre o papel, a função.
Não estamos dizendo que essas perguntas não interessem a PEADS. Queremos dizer que essas perguntas são subordinadas a outras sobre o papel, a função, e ao fim. As perguntas sobre o papel, a função e a finalidade da escola, são perguntas respondidas pela ética, que é uma disciplina da filosofia. Enquanto que as perguntas sobre os meios, as formas de ensinar, as dinâmicas usadas na escola são respondidas pela psicologia, pela sociologia, pela genética, biociência e outras ciências.
Convém estar atento para essa diferença, que é a maior diferença entre a PEADS e outras concepções de educação. A PEADS não se diferencia de outras propostas porque faz pesquisa, porque faz aula passeio, porque aprende com os pais. A diferença maior é por conta do papel que na PEADS a escola exerce, pois, pesquisa muitas escolas fazem, porém com outra função, com outro papel. A PEADS está toda perpassada de dimensões filosóficas.
Quando falamos de dimensões filosóficas, não queremos dizer coisas abstratas, elucubrações difíceis, raciocínios complicados, preocupações de intelectuais. Muito pelo contrário! Filosofia é o que está no dia a dia da professora, da sua relação com o aluno, com a comunidade, que está nos textos, nas pesquisas, nas devoluções, nos censos, dentro de você, dos seus sentimentos e de suas emoções. Filosofia perpassa todos os currículos, os da PEADS que vocês aplicam, como perpassa todos os outros que se aplicam nas escolas convencionais. Não é que o currículo da PEADS tenha dimensões filosóficas e os demais não tenham. Todos têm dimensão filosófica.
O que acontece é que há filosofias diferentes. Em relação às dimensões filosóficas nesse texto, vamos explorar apenas questões da ética, embora seja difícil de falar de ética sem falar de outras dimensões da filosofia. Na realidade estão articuladas. Vamos distinguir apenas por uma questão metodológica. Como em um exame de sangue, sabendo que o sangue não se separa do organismo, a não ser para análise ou para tornar-se medicamento.
Para ilustrar o que estamos dizendo, vamos partir das situações do cotidiano, formando duas colunas, em uma vamos colocar a opção filosófica da PEADS e em outra a opção de uma concepção diferente.
Filosofia diferente | Filosofia da PEADS |
Maneira de olhar para o aluno | |
A professora olha para uma aluna do meio rural, pobre, sem muito acesso ao consumo e pensa que essa é uma coitadinha, pobrezinha, sem muito futuro porque seus pais não têm muita chance na roça. | Diante da mesma aluna, a professora enxerga todo o potencial que essa criança tem e que pode ser desenvolvido a partir da escola. Enxerga como pessoa humana à procura de oportunidades, capaz de fazer escolhas. |
A professora olha para uma criança que vem para a escola como uma pessoa sem saber de nada, sem trazer conhecimento, para aprender na escola com a professora. | Diante da mesma criança, a professora enxerga, usa e valoriza o saber e a experiência que a criança já adquiriu em casa, com seus familiares, no roçado, cuidando dos irmãos menores. Não trata como cérebro vazio. |
Diante da criança rural, a professora enxerga e assim a trata, como objeto da caridade da professora, do governo, dos políticos, porque é pobrezinha. | Diante da mesma criança, a professora enxerga e assim a trata, como sujeito de direitos, cidadã, autora, protagonista. Não como objeto de favor, da boa vontade dos políticos. |
Crianças do meio rural, sem recursos financeiros, pobres, são despesas para a prefeitura, o estado e o governo. São problemas! | Essas mesmas crianças constroem conhecimentos sobre o município, fazem diagnóstico da realidade e apresentam com a comunidade solução para os problemas. |
Maneira de olhar o campo | |
O meio rural e o campo são lugares de pobreza, de fome, de carência que precisam da ajuda do governo. | São lugares de potencialidades, de riquezas inexploradas e que não se tornaram agenda das decisões políticas do governo. |
A criança rural é matuta, atrasada, tímida e acanhada para falar, não gosta de olhar nos olhos das pessoas quando fala, é envergonhada. | A criança é assim até o momento que a escola não trata da sua realidade, não valoriza, nem a transforma em objeto de estudo. Na hora que valoriza, ela revela-se diferente. |
Como é escola rural, qualquer coisa basta, não precisa ser exigente, puxar muito pelas crianças, colocar móveis de boa qualidade. | Sobretudo porque é rural é que precisa ser exigente, preparar-se bem, puxar pelas crianças, porque são potenciais grandes diante de desafios maiores. |
O lugar da realização das pessoas que sabem ler é na cidade, a escola ensina e a criança aprende para melhorar de vida e só melhora de vida na cidade, que tem mais chance, mais emprego, mais acesso a informação, a saúde aos serviços. | O lugar da realização das pessoas é onde as pessoas gostam de estar e se sentem bem. Pode ser no campo ou na cidade. Conquanto que elas desenvolvam suas potencialidades, construam suas identidades, estimulem a sua autoestima, convivam com seus familiares e no campo, tudo isso é possível como na cidade. |
Maneira de olhar os valores | |
O pobre no campo só precisa usar as mãos para trabalhar, criar calo. Rico é que usa a cabeça, porque tem negócio, viaja, vai atrás de cliente, dirige empresa. | O pobre no campo precisa usar cabeça e não só mão, precisa “fazer calo na cabeça”. Trabalhar no campo é um negócio que exige planejamento, avaliação, mercado e visão empresarial. |
O objetivo da escola é ensinar a ler, escrever e contar. Repassar os conhecimentos para os alunos, para que eles se formem e tenham sucesso na vida. | O objetivo não é só esse, é com a leitura, a conta e a escrita, construir conhecimentos, desenvolver habilidades, preparar o aluno para a vida, para a participação cidadã. |
Pesquisar é negócio para academia, mestrado e especialista. Na escola rural basta só ensinar a ler… | Pesquisar é atitude de cidadão/ã, de trabalhador/a, de quem aprende e de quem ensina, é uma forma privilegiada de construir conhecimentos e valores. |
O papel da professora é ensinar os conhecimentos do currículo. Valores não é com ela, isso é com a família. A família que eduque seus filhos para o bem. | O currículo da escola não passa somente conhecimentos, passa valores, concepção de vida, de pessoa, de mundo, e precisa explicitar esses valores e não deixar oculto, nem só para a família. |
A escola tem responsabilidade pelo que acontece dentro de seus espaços, de seus muros, o que acontece do muro para fora não é responsabilidade da escola. | A escola preocupa-se com o que acontece dentro e fora, porque a aprendizagem acontece e os valores são construídos dentro e fora dos muros, em interação com a comunidade e a partir da vida da mesma. |
A professora é quem sabe, ensina e avalia o aluno. O aluno aprende e é avaliado pela professora. | A professora sabe, ensina, avalia e também aprende e é avaliada no processo de aprendizagem pelos seus alunos e pelos resultados que eles alcançam. |
A responsabilidade da escola em ensinar, termina com a formatura dos alunos. | A responsabilidade é ensinar para que o aluno continue aprendendo e estudando ao longo da vida. |
O conhecimento é uma construção intelectual, a professora tem que puxar pela memória do aluno. | O conhecimento não é só uma construção intelectual. Envolve emoções, motivação, desejo, vontade, autoestima, autoconfiança, identidade. |
O importante é o conhecimento científico, o popular é insuficiente, não alcança a verdade comprovada. | O importante é a interação entre o conhecimento científico, técnico e popular e outras formas de conhecimento, como o artístico, o religioso, o sensitivo. |
Aprendemos para poder explorar os recursos da natureza | Aprendemos para amar a natureza, preservar o seu ambiente, imitar e respeitar suas leis. |
A aptidão do educando/a avalia-se com o teste ou prova. Com sua capacidade de adquirir boas notas. | A aptidão do aluno/a avalia-se com muitos outros instrumentos, além de prova e teste e em processo. Avalia-se também verificando os valores que o aluno está construindo. |
A professora acha que pode ensinar sem ter vocação. Sem amar e sem ser amada. O ensino não tem nada a ver com isso. Essas coisas são de outro âmbito e não influi em sala de aula. | Só educa bem quem se sente vocacionada, quem se ama muito, quem se cuida. Pode ter ou não marido, companheiro ou namorado. Pode não ter um casamento feliz, mas não pode perder sua capacidade de amar e amar-se. É preciso “ensinar com o coração”. |
Como podem observar, essas diferenças são diferenças filosóficas, de concepção de pessoa, de concepção de sociedade, de concepção de mundo, natureza e especialmente, concepção de valores e de pessoa. Não são diferenças didáticas. Quem tem a concepção filosófica de uma coluna dessas, tem a didática correspondente.