1.13. CONCEPÇÃO DE CURRÍCULO NA PEADS

 

Texto escrito para aprofundar com Professoras do
Campo que aplicam a Peads em suas atividades
pedagógicas – 2006.

Relacionar os resultados das pesquisas aos conteúdos das disciplinas tradicionais constitui sem dúvida a maior dificuldade por parte das professoras na incorporação da metodologia da Peads. A superação dessa dificuldade passa por uma compreensão mais profunda do que seja o currículo, para que o currículo, quem decide sobre o mesmo, como apareceu na escola e na educação e qual a autonomia e autoridade que as professoras têm para refazer os currículos. Esse texto pretende contribuir para esse entendimento, ajudar a professora e o professor a compreenderem a partir do resgate histórico o pano de fundo dessa situação. Vamos dividir a história da construção do currículo em vários momentos para facilitar o entendimento.

  1. PRIMEIRO MOMENTO – A CONSCIÊNCIA DAS NECESSIDADES HUMANAS

Vamos precisar de um esforço da nossa imaginação retornando aos primórdios da humanidade, ao tempo das cavernas, antes do aparecimento da agricultura, da pecuária, da descoberta do fogo. Nesse período, as pessoas começaram a ter consciência das suas necessidades. Quais eram essas necessidades? As mais básicas possíveis, as mesmas que a criança sente quando nasce. Entre essas, podemos indicar a necessidade de se alimentar, de beber água, de dormir, de amparar-se da chuva, da temperatura quente ou da fria, de se reproduzir. Necessidades praticamente iguais às sentidas pelos animais.

            A essas necessidades mais elementares foram surgindo outras um pouco mais complexas. Por exemplo, para se alimentar, as pessoas foram descobrindo a necessidade de procurar os alimentos, de guardar os alimentos, de fazer instrumentos para facilitar a preparação da comida, seja da caça, seja da coleta. Para se abrigar, foram sentindo a necessidade de encontrar um abrigo que amparasse do sol e da chuva, onde pudesse defender-se do ataque de outros animais. Essas diferenças já distinguiam a espécie humana das outras espécies de animais.

  1. SEGUNDO MOMENTO – AS NECESSIDADES HUMANAS TRANSFORMAM-SE EM PRÁTICAS HUMANAS

O atendimento dessas necessidades veio aos poucos levando a humanidade a respondê-las. Eram necessidades repetidas por gerações que iam sucedendo-se. E na resposta a essas necessidades, a humanidade foi aperfeiçoando a maneira de atender e responder. Foram criando a consciência de que os adultos podiam responder melhor do que as crianças, que umas pessoas iam conseguindo fazer melhor do que outras. E de tanto repetir a resposta a essas necessidades, e a outras que iam surgindo, foi surgindo uma prática de fazer as coisas, de preparar a comida, de criar os filhos, de se proteger do frio e do sol.

  1. TERCEIRO MOMENTO – AS PRÁTICAS HUMANAS TORNAM-SE EXPERIÊNCIAS

As práticas tantas vezes repetidas possibilitaram ao homem de tomar consciência delas, de aperfeiçoá-las cada vez mais. Viraram experiências. Passaram a fazer parte do cotidiano. A humanidade foi conseguindo armazenar as informações, foi tomando consciência dessa capacidade de guardar e conservar a experiência, foi criando jeito de registrar na mente e fora de si mesma sua experiência, foi criando símbolos em forma de sons, de palavras, de gestos, de sinais, de códigos. Foi um grande salto na evolução humana essa capacidade de criar representações mentais e transmiti-las através de vários códigos.

  1.  QUARTO MOMENTO – AS EXPERIÊNCIAS HUMANAS TRANSFORMAM-SE EM SABERES

Com a capacidade adquirida, acumulada, armazenada, expressa em símbolos, em representações orais, gestuais, desenhadas, a humanidade foi dando saltos na sua evolução. Chegou a transformar as suas experiências em saber objetivo. As experiências deixaram de ser só uma vivência interior das pessoas. Os mais experimentados foram arrumando, organizando e tornando um saber. Esse saber já podia ser acumulado e passado para as gerações mais novas de forma mais rápida. Já não precisava esperar anos para aprender fazer a comida, a coleta ou a caça. As gerações anteriores já haviam aprendido.

Hoje tem uma expressão muito usada “não precisa inventar a roda”. Alguma civilização na história já inventou, as que se seguiram aperfeiçoaram o seu uso e atribuíram-lhe mais funções. Assim foi com todas as invenções e experiências que se tornaram saber. A humanidade foi aprendendo a caçar, a fazer o fogo, a aprimorar suas comunicações e suas relações, a maneira de criar seus filhos, o modo de registrar seu saber. Esse saber registrado tornou-se um acúmulo disponível para gerações futuras, ou para outros grupos humanos que ainda não dominavam. É como uma receita de um prato, de um bolo ou doce que a avó fazia, mas não tinha ainda escrito, passado por papel. Um dia a filha ou neta passa para o papel e esse saber da avó passa a ser disponibilizado para quem a filha ou neta quiser. Esse saber ficou exteriorizado e independente da avó.

  1. QUINTO MOMENTO – SURGE A CAPACIDADE DE ENSINAR E DE APRENDER, SURGE A EDUCAÇÃO.

Esse acúmulo de saberes foi se transformado no conhecimento objetivado, registrado fora da cabeça das pessoas. Quem tivesse condições, poderia se apropriar dele, aprendê-lo, tirar lições, em outras palavras, poderia aprender. E para aprender, tinha que alguém ensinar, o pai, o avô, uma pessoa mais velha, mais vivida e experimentada passava saberes acumulados, conhecimentos aos filhos, aos mais novos, aos menos vividos. Foi nessa fase da evolução da humanidade que nasceu a educação. Educação era o desenvolvimento da capacidade de uma pessoa ensinar um conhecimento objetivado, para outra.

  1. SEXTO MOMENTO – A EDUCAÇÃO CONSOLIDA-SE COMO INTERAÇÃO ENTRE SUJEITOS.

As pessoas, tanto hoje como no tempo das cavernas continuam tendo suas necessidades, que são cada vez mais complexas: viver, trabalhar, construir um lar, adquirir uma profissão, gerir negócios, propriedades, bens, atuar na sociedade que vive, conviver socialmente, enfrentar tensões e conflitos, escolher formas de vida, gerar renda etc. Para atender a essas necessidades, a humanidade tem disponível um saber acumulado. Mas esse saber não está ainda presente nas pessoas que vão nascendo e crescendo. Para as pessoas terem acesso a esse conhecimento acumulado, disponível, elas precisam apropriar-se.

Em outras palavras, as pessoas precisam subjetivar, interiorizar, trazer para dentro de sua mente, de sua inteligência esse saber, transformar o saber objetivado, acumulado em saber subjetivado, apropriado, interiorizado. Cada civilização, cada nação, cada povo construiu formas de desenvolver esse processo, de fazer educação, de ensinar e aprender. Em algumas culturas esse processo é mais espontâneo, aprende-se na convivência familiar, no trabalho, na vida social. Em outras esse processo foi mais sistematizado, programado, aprende-se também nas escolas.

  1. SÉTIMO MOMENTO – RECOMEÇA O CICLO DAS NECESSIDADES, PRÁTICAS, EXPERIÊNCIAS…

No início do processo de ensino e de aprendizagem a finalidade era sempre atender as necessidades sentidas pelas gerações mais novas, para que essas gerações conseguissem desenvolver suas práticas e essas práticas fossem tão bem desenvolvidas que se tornassem experiências, habilidades, capacidades, que o aprendente chegasse ao nível de objetivar, acumular, a ponto de depois poderem ensinar para as gerações subsequentes. A finalidade do ensino e da aprendizagem ou da educação era então ensinar a viver, a atender as necessidades da vida.

Podemos concluir com a figura de uma ciranda. As necessidades são das pessoas, da vida, dos grupos humanos, dos homens, das mulheres, dos jovens, das crianças. Pessoa, família, instituição, nação, estado, país têm necessidades a serem atendidas. Essas necessidades na medida em que forem atendidas viram práticas e as práticas viram experiências, e essas experiências viram saber objetivado, acumulado, construído historicamente, para ser ensinado e reconstruído subjetivamente, pelas novas pessoas, novas instituições, novos grupos humanos, novas gerações.

  1.  AONDE ENTRA A QUESTÃO DO CURRÍCULO

Esse saber acumulado foi ficando cada vez mais amplo, mais complexo, a cada dia ele recebe novas contribuições. Até o século XV ainda era organizado de uma forma unitária, articulada. Apresentava-se junto o conhecimento da religião, da filosofia, das ciências, das artes, da economia, da política, da história. A partir da época do Renascimento, o conhecimento acumulado do ocidente passou a se distinguir e a separar-se, a ciência não quis mais ficar com a religião, nem com a filosofia, preferiu ficar em um campo mais autônomo, para ter mais liberdade diante da inquisição da Igreja Católica.

Dentro da própria ciência foram surgindo ramos, das matemáticas, das humanas, e dentro dessas foram surgindo ramos mais específicos, de forma que nos tempos de hoje são tantos os ramos da ciência, que ninguém mais domina tudo. No campo da filosofia e da teologia, das artes, também surgiram ramos diferenciados, que diversificaram muito o saber acumulado. O fato é que cada ciência hoje está bastante ramificada e umas articulam-se com outras. Na história das pessoas e das nações, surgiu um dilema, que provoca uma grande dor de cabeça. O que escolher desse patrimônio de conhecimentos para aprender?

Quem vai decidir sobre essa escolha? Quais os procedimentos, as normas para fazer essa seleção? Quais os critérios para escolher uma parte desse saber acumulado e deixar outra de fora? Quem decide e quem obedece? Quem vai garantir a verificação da escolha e da capacidade de aprender? Em cada família e em cada sociedade, alguém ou algum grupo toma essa iniciativa. Leva-se em conta muitos contextos. Os egípcios a beira do rio Nilo, selecionavam os ensinamentos referentes ao rio e as lavouras de suas margens, os fenícios os ensinamentos referentes ao mar, à navegação e ao comércio.

Os romanos referentes aos serviços militares, os atenienses referentes à filosofia e assim em cada povo. Essa seleção nunca foi só do conhecimento, nem só de conteúdos das ciências, estavam junto aos valores, as crenças, as relações, o que cada povo achava importante. E dentro desse povo, de cada cultura, quem escolhia e definia os valores e os conhecimentos a serem ensinados e aprendidos, era a parcela que detinha a hegemonia do poder. No começo da humanidade aprendia-se e ensinavam-se as necessidades sentidas pelas pessoas e grupos humanos.

Com a divisão da sociedade em classes, em categorias sociais, ou em castas, as necessidades a serem atendidas passaram a ser determinadas e escolhidas por quem detinha mais poder, quer fosse um poder religioso, um poder econômico, um poder social e cultural. Na sociedade brasileira é fácil entender essa situação. Basta ver como as famílias tradicionais encaminhavam seus filhos para a vida. O que se apresentava inteligente, ia estudar na Europa ou nas capitais, os outros ficavam para cuidar da propriedade. Essa mesma classe teve a hegemonia na construção e definição das leis e das escolhas curriculares.

Na definição das escolhas das parcelas do saber, as elites urbanas deram o seu tom. Definiram suas necessidades e a impuseram como necessidade universal para todas as populações, raças, etnias e regiões geográficas. Associaram aos conhecimentos os valores as crenças, as relações que os ajudavam na manutenção da sua hegemonia. Assim, os alunos das classes ricas aprendiam coisas que os ensinassem a mandar, a usar a cabeça, a serem executivos e aos da classe pobre, as coisas que os ensinassem a obedecer, a usar as mãos, a ser operário[1].

As necessidades do campo ficaram esquecidas e não foi por acaso. A escolha sempre teve critérios, não foi aleatória, sempre teve prioridades, valores e crenças. Uma das crenças muito difundidas era que o campo no desenvolvimento capitalista tendia a desaparecer e migrar para a cidade, ficando apenas alguns resíduos. E o campo que ia ficar, seria o campo modernizado. Outra escolha foi achar que o campo não precisaria de uma educação de qualidade, qualquer migalha seria suficiente, quem precisasse de mais, então viria para o meio urbano e seria atendido na cidade.

A educação do campo, agora legitimada como Política Pública, direito de todos e dever do estado, surge dentro de um grande movimento pelo direito de decidir sobre suas necessidades a serem atendidas, para criar práticas que os favoreça, para legitimar experiências que contribuam com o seu desenvolvimento, com a sua cultura, com sua visão de futuro. A educação do campo supõe o direito de escolha, de seleção do currículo, das formas de avaliação, da normatização dos procedimentos. Portanto, não se reduz a uma questão didática, é uma questão política, filosófica, é uma questão de poder e de direito.

Para desenvolver a mata, o agreste e o sertão, há um patrimônio acumulado de saberes, conhecimentos, valores, crenças. Está disponível na literatura, na memória viva dos mais velhos, na história das comunidades, nas manifestações culturais e artísticas, nas bibliotecas, nos centros de pesquisa e estudo. E como as elites não se preocuparam em enriquecer esse patrimônio, muita coisa ainda resta a construir. A educação do campo convoca as pessoas e os grupos humanos a se tornarem autoras da construção e da acumulação de conhecimentos. Nessa tarefa, cada aluno/a e professora/or, cada escola, cada gestora ou gestor público tem sua parte.

  1.  CONCLUSÃO

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais e as Diretrizes Operacionais para a educação básica nas escolas do campo, ambas editadas pelo Conselho Nacional de Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais editados pelo MEC reconhecem o direito das escolas construírem seus currículos, a partir das necessidades do desenvolvimento das pessoas, das comunidades e dos territórios. Mas na prática não funciona assim! Funciona ao contrário.

Como essa conquista ainda não se tornou cultura na prática escolar, as dirigentes e educadoras ficam receosas de fazer as mudanças que necessitam. Arriscam apenas algumas adaptações, mudanças superficiais, que não mexam na estrutura tradicional dos currículos. Temem como se não fosse legítimo, como se não tivessem poderes de fazer, de procurar o que é melhor e mais adequado para as suas escolas, temem pressão dos alunos, das famílias, das colegas, do vestibular.

Em outras palavras, tem a oportunidade de usar um paradigma novo, mas receiam, porque estão no meio de pessoas que usam o paradigma tradicional. Temem ousar criando e recriando, assumem apenas adaptações. Aí fica difícil aplicar a Peads – Programa Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, pois renunciam a usar um poder que tem e que a Peads dá muita importância ao seu uso. Podemos convocar as educadoras e gestoras, alunos e famílias a ousar um pouco mais com algumas sugestões.

  • Criar na escola entre os alunos e professores outras referências para o saber que não fossem unicamente as disciplinas, por exemplo, formar equipes permanentes de estudo sobre temáticas de interesse dos alunos: água, solo, vegetação, agricultura, política, saúde, zootecnia, cidadania etc.
  • Os alunos estudariam essas novas temáticas da iniciação até o mais profundo conhecimento científico que pudessem alcançar. Tornar-se-iam graduados no nível fundamental, médio e superior. Seriam os técnicos, os doutores nesse assunto nas comunidades.
  • Boa parte das aulas não seria nas salas tradicionais, seriam em outros locais, em passeios, pesquisas, viagens, entrevistas, aulas expositivas por especialistas, pesquisas na internet, seminários, fóruns etc.
  • Vamos aos exemplos mais concretos. No município de Estrela de Alagoas, desmembrado de Palmeira dos Índios é rara a família rural que não tenha nas suas propriedades um plantio de Pinha. O que conhecem da Pinha corresponde ao conhecimento acumulado até agora pelas famílias. Vendem por um preço baixo e nem sempre sabem porquanto é revendida fora. Quantos conhecimentos ainda faltam ser adquiridos sobre a pinha? O quanto de conhecimento ainda poderia ser agregado para melhorar o manejo, a reprodução, a resistência às pragas, ao beneficiamento, a comercialização? Possivelmente muita coisa poderia ser acrescentada ainda. Mas as escolas estão rodeadas de plantadores de pinha, pensando que esses conhecimentos seriam responsabilidade de alguma extensão rural, de algum projeto específico, que não caberia a escola tal tarefa.
  • Cada comunidade tem um ou mais arranjo produtivo local que necessita ser conhecido, pesquisado, agregado valor, vendido por um preço melhor. São conhecimentos de ordem técnica e científica, cultural e artística, que exigem criatividade, envolvimento, trabalhos de equipe, de articulação, de gerenciamento. Que por outro lado, precisa de matemática, de escrita, de leitura, de ciência, de informática e de política.
  • Do maior ou menor conhecimento desse arranjo e de suas potencialidades está dependendo a vida das famílias.  E porque não o estudar na escola, se é na escola que se produz e se constrói quatro horas de conhecimento por dia, vinte horas por semana, oitenta por mês e oitocentas por ano?
  • Porque se contentar em apenas pequenos trabalhos pessoais ou de equipe sobre um assunto de tamanha importância para a comunidade local? Porque não ir mais a fundo e a médio e longo prazo?
  • Porque uma escola do semiárido tem que ensinar durante 11 anos português e matemática, quando as famílias lidam com bode, com abelha, com pouca chuva, com clima instável, com tradições culturais, com formas de sobrevivência? Porque não inverter o cenário, o português e a matemática serem ensinados para aprender a cuidar do bode, da riqueza que ele pode trazer, das exigências técnicas que ele requer, do valor nutritivo de sua carne, do seu leite e sub produtos que ele fornece, da comercialização mais compensadora que poder ter, da pele que pode ser mais bem aproveitada.
  • Assim, a vaca nas bacias leiteiras do estado, as culturas nas áreas irrigadas, os peixes e animais aquáticos nas barragens e açudes, a confecção nos municípios da Sulanca de Pernambuco.
  • As fichas pedagógicas e os atuais censos difundidos pelos formadores são sementes de possibilidades novas. Uma vez desdobrados nos primeiros anos de implantação da Peads vão proporcionar muitas outras formas de material pedagógico.

[1] . Bourdieu Pierre s Passeron Jean-Claude foram os clássicos desses estudos na França. La Reprodición, Elementos para uma Teoria del Sistema de Enseñanza. Editorial Popular. Madrid. Espanha.

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