Texto Didático para estudo com professoras e estudantes do Curso
Técnico em Agroecologia – Versão inicial em 2004
Como cada pessoa tem uma concepção sobre si mesma, também tem uma interpretação da sua própria história. Pode achá-la uma rotina, uma repetição de fatos, ou pode achá-la inovadora, diferente em cada etapa ou período da vida. Cada pessoa tem uma concepção sobre sua vida, sobre sua história e sobre a história da sua comunidade ou nação. Vamos analisar essa temática nesse texto.
6.1. A Concepção de História do Povo Grego
Há quem pense que a história se repete como os ciclos da natureza. Os dias se repetem a cada 24 horas, a semana a cada 7 dias, o mês a cada 30 ou 31 e o ano a cada 365 dias. As estações de inverno, primavera, verão e outono se repetem todos os anos, e há sempre um recomeço de cada coisa. A pessoa acorda, levanta, apronta-se para comer e ir trabalhar, no final do dia, de novo vai dormir para acordar no dia seguinte.
Os gregos pensavam e concebiam a história assim, como um ciclo, como um eterno retorno, que ninguém pode mudar. Seu destino e percurso já estão definidos, nem os homens, nem os deuses seriam capazes de mudar. Se alguém mudasse um aspecto, uma dimensão, no final das contas, voltaria depois tudo à mesma coisa. Não mudaria em seu destino, apenas em algum elemento secundário.
Muitas pessoas ainda seguem esse modelo grego, sentem-se incapazes de dar qualquer outro destino ao que foi traçado para suas as vidas. Se nascer pobre, vai continuar pobre, pode ir atrás de uma chance aqui ou acolá, mas termina mesmo pobre. Se houver chance de mudar, não será por ele, mas por ordem de um destino, de outro ser, de um superior, de um político, de uma loteria. O pensamento grego sobre a história perpassa por todos os seus teatrólogos (Ésquilo, Eurípedes e Sofocles)[1].
Pode ter até uma exceção, se o pobre virar jogador famoso de futebol, ou tirar na loteria. Mas será sempre um acaso, uma sorte. Os acontecimentos se sucedem numa lógica já tão definida que ninguém vai poder atingir o miolo. Pode até alcançar uma mudança pequena, temporária, mas não penetra na estrutura. Não muda de destino, apenas faz curva.
6.2. A Concepção de História do Provo Hebreu
Anterior aos gregos, média de 2.000 anos antes de Cristo existia outro povo com um pensamento inverso a esse. Para esse povo, a história não se repetia como na natureza, ela tinha uma direção, uma intencionalidade, ela caminhava sempre, mesmo aqui e acolá, fazendo alguns recuos. Mesmo que aparentemente desse a impressão de está recuando.
Esse povo acreditava que eram as pessoas, as comunidades, as nações que construíam o destino de sua história, e mais, acreditavam na possibilidade de mexer com a história. Os homens e as mulheres não tinham seu destino já traçado naturalmente, com a força da lei da natureza. As leis que regem a natureza não eram as mesmas que regem a história.
Esse povo passou a pensar assim porque se sentiu capaz de mudar o destino de sua história, eram escravos no Egito. Os faraós diziam que eles teriam que ser escravos, e muitos até acreditavam que deviam ser mesmo, e viviam como escravos sem reclamar. Porém, a concepção de alguns líderes era de que não deviam viver como escravos e sim como livres.
A concepção dos faraós era muito parecida com a dos gregos. Se a história já estava com seu destino traçado, e ele era faraó, era para continuar sendo faraó e os escravos para continuar sendo escravos. Quem quisesse mudar essa história era mesmo que querer mudar a natureza. E quem quisesse mudar a natureza deveria ser castigado, como exemplo para os demais.
Os faraós aproveitavam-se da religião para dizer que os deuses queriam assim e eles representavam os deuses. Os hebreus então disseram que esses deuses eram falsos, porque o Deus que eles adoravam era diferente, era um Deus que queria propor a construção de outra história. E apontava uma direção, que era de mudança, de justiça e de liberdade.
6.3. Influência das duas Concepções de História “na História”
Essas duas concepções de história dominaram muito a humanidade. A mais forte foi a dos gregos pelo menos até o século XIX. Era uma concepção muito boa e cômoda para quem exercia poder, porque tinha a sua posição garantida. Ora, se a história tinha já um destino traçado, só restava às pessoas segui-lo. Assim, deixava tranquila a ordem social, quem quisesse modificar, seria punido, tachado de perigoso, subversivo, herético, opositor. Cada época deu um nome peculiar para identificar quem discordasse da concepção.
Assim, os faraós, reis, os senhores feudais e ditadores davam-se muito bem com essa concepção, porque justificavam com ela a posição histórica que herdaram, e sentiam-se com o direito e a autoridade de perseguir e matar quem quisesse ser diferente. Assim, ricos trataram pobres, brancos trataram negros, colonizadores trataram nativos, homens trataram mulheres, chefes trataram subordinados, patrões trataram operários, fazendeiros trataram peões.
Eram sempre esses grupos dominantes que também escreviam os livros, os documentos e os registros da história. A história sempre era contada a partir da ótica deles. Os livros das escolas e das universidades tratavam a história com esse olhar. Os fatos heroicos eram ações dos poderosos, das lideranças, das autoridades. Fatos como a libertação dos escravos era mérito da Rainha Isabel, Independência do Brasil era mérito de Pedro I.
Se algum grupo como o de Antônio Conselheiro quisesse fazer diferente, era tachado de fanático e o governo mandou quatro expedições armadas para destruir a iniciativa na cidade de Canudos. Na imprensa, o governo aparece como a salvaguarda da ordem, o povo liderado por Antônio Conselheiro como fanático, ignorante.
A outra concepção, a dos hebreus, que via a história como uma construção humana, como podendo mudar de rota, como seguindo em frente, era um risco para quem ficava no poder. Abria sempre uma brecha, para quem era oprimido, poder um dia deixar de ser e até inverter a ordem, oprimir quem antes era opressor. Karl Marx foi o grande filósofo que aprofundou a concepção dos hebreus.
Apesar de se confessar ateu, terminou desenvolvendo a concepção histórica de um povo religioso. Como na bíblia, ele mostrou que os operários explorados pelo capital industrial do século XIX poderiam se libertar e passar a história para outra direção. Os operários poderiam organizar sua classe e tomar o poder e passar a ser dona dos meios de produção e dominar o estado.
Marx ainda foi mais longe, afirmando que essa era a direção que a história estava tomando. A história já havia passado pelo tempo da sociedade patriarcal, primitiva, pelo tempo da sociedade escravagista, pelo tempo da sociedade feudal, pelo tempo da sociedade capitalista, e era chegado o tempo da sociedade socialista, e que terminaria na sociedade comunista.
Essa interpretação da história de Marx marcou muito o pensamento dos últimos 150 anos da humanidade, influenciou a revolução russa, a chinesa, a cubana, a guerra do Vietnam e muitas outras em todos os continentes. Ele equivocou-se em alguns das suas conclusões, mas deixou a marca na filosofia, na economia, na sociologia, na política.
Ele insistia que a história e o mundo já haviam sido muito estudados, analisados e interpretados. O seu interesse agora era poder transformar o mundo e a história. Essa concepção contribuiu muito para os movimentos de libertação nos últimos cento e cinquenta anos. Marx trouxe de volta o pensamento do povo bíblico de que a história poderia ser outra, não tinha que permanecer do jeito que as pessoas encontravam.
A história não era uma fatalidade, um caminho sem volta, uma predestinação. As pessoas não eram condenadas a seguir um destino traçado por outras, por outros países. As pessoas poderiam sonhar com outro mundo, solidário, mais fraterno e mais justo. Pode-se discordar de Marx, dos meios e estratégias que ele propôs para construir esse mundo diferente. Porém, sua concepção de história mudou a história.
Muitos cristãos nos dois últimos séculos encontraram muita afinidade entre o pensamento bíblico, cristão e o pensamento dos marxistas nesse sentido. A polêmica Teologia da Libertação dos teólogos latino-americanos revela essa aproximação do pensamento bíblico com o socialismo de Marx. Os cristãos, sobretudo, na América Latina se engajaram para pensar um futuro diferente para seus países, suas comunidades. Um futuro diferente para os índios que eram negligenciados pelo governo, para os negros que se sentiam discriminados, para as mulheres que se viam subjugadas pelos seus companheiros, para os excluídos.
Buscavam um futuro diferente para o meio ambiente, os recursos naturais, o planeta ameaçado pela poluição, os pobres ameaçados pela fome. Como instrumento, esses grupos construíram uma concepção de história parecida com a da bíblia, parecida com de Marx. Os movimentos sociais em geral eram e são envolvidos com essa concepção de história.
Essa concepção de história é também reconstruída na formação dos Técnicos em Agroecologia do Serta. Esses se preparam para mudar primeiro a sua história e ao mesmo tempo em que mudam a sua, estão também mudando a história do seu entorno, das suas circunstâncias. Muitos estudantes entraram para a formação com a concepção dos gregos, achando que não poderiam sonhar com outro futuro para si, nem para seu município.
Mudam exatamente quando desenvolvem outra concepção de história. Quando passam a sentir que podem ser protagonistas de outra história, quando passam a se sentir e fazer parte dessa construção. Por isso que é tão importante ter no itinerário curricular o aprofundamento das concepções. Cada técnico precisa dominar muito esse tema.
Com os produtores orgânicos acontece a mesma coisa, eles acreditam que é possível dar rumo diferente a produção, que a terra, o solo e os recursos naturais podem ser manejados a partir de outra paradigma (ver concepção de mundo e natureza).
A professora que vivencia a Peads – Programa Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, também consegue construir outro rumo para história da escola, dos alunos, da comunidade. Ele percebe que não pode reduzir o ensino a uma grade curricular que não lhe diz respeito, imexível, inexorável. Ela interfere, recria, reconstrói, e cria rumos diferentes.
Leitura complementar:
Galeano, Eduardo, Veias abertas para a América Latina. São mais de 30 edições já vendidas, onde ele estuda a história da América Latina com uma concepção diferente dos tradicionais historiadores.
Mesters, Carlos, O projeto de Deus, O autor estuda a concepção dos hebreus e dos faraós.
Boff, Leonardo, Teologia da Libertação, Editora Vozes de Petrópolis.
Autores das tragédias gregas: Ésquilo, Sófocles, Eurípides. As tragédias gregas são famosas pelo fatalismo do destino nos seus personagens principais.
[1] . Coletânea Clássicos Jackson – Editores RJ.