1.10 AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO POPULAR, EDUCAÇÃO DO CAMPO E EDUCAÇÃO ESCOLAR FORMAL

Texto escrito para aprofundar com professoras do campo e técnicos em
agroecologia os antecedentes da Educação do Campo – 2011.

Nos Movimentos Sociais do Campo já existe um Processo Educativo. Além dos Movimentos Sociais (MS), outros grupos também construíram Processos Educativos: pessoas e instituições, pastorais de diversas igrejas e organizações não governamentais, sindicatos, extensionistas e partidos políticos já desenvolvem há mais de meio século. O Objetivo desse texto é identificar esses processos, conhecer como se formam, como constroem seus currículos, seus objetivos, desenvolvem suas articulações, formam seus quadros, avaliam e monitoram seus resultados e como incidem sobre as políticas públicas.

Os Processos Educativos desenvolvidos pelos Movimentos Sociais (MS) vão orientar o Técnico em Agroecologia, o Extensionista em sua atuação técnica, política, social, pedagógica e a Professora do Campo. O Curso Técnico não vai reinventar a roda quando já existe tanta produção anterior. O inovador no Curso vai ser exatamente a apropriação desses processos para aplicar na realidade atual, bastante modificada se comparada com a dos últimos 20, 30, 40 anos. É um patrimônio que pertence a humanidade, disponível para quem se interessar. Muitos sujeitos e protagonistas desses Processos estão entre nós, nas nossas comunidades, municípios, sindicatos e MS.

 9.1. A EDUCAÇÃO QUE JÁ EXISTIA NO CAMP

Em abril de 2012, dia 2 na Paraíba, no município de Sapé foram celebrados os 50 anos do assassinato do líder das Ligas Camponesas da Paraíba, João Pedro Teixeira. Movimentos Sociais, Igrejas, Universidades, Ong, Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, Políticos, Governador da Paraíba participaram desse ato de resgate da memória das Ligas Camponesas. E no dia 17, em Pernambuco, a FETAPE – Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Pernambuco deu início às celebrações dos 50 anos do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Pernambuco, na cidade de Nazaré da Mata, terra natal do líder Euclides Almeida do Nascimento.

Esses dois exemplos ilustram o quanto de memória do Campo existe e está para ser conhecida e apropriada por outras gerações. Essa história é ainda mais antiga, mas para o objetivo do texto vamos nos ater aos últimos 50 anos. Embutido nas lutas, nas mobilizações, na atuação política, econômica, social, organizativa, nos confrontos e conflitos encontra-se um processo educativo de formação de pessoas, de grupos, de instituições, ou seja, há uma Educação presente desde muito tempo, ou seja, Processos Educativos são vividos, desenvolvidos.

Um elemento que aparece na análise desses processos formativos é que não foram e nem são formais, ou seja, não fazem parte do sistema formal de ensino, das escolas, das instâncias públicas, não são coordenados, nem regidos pelo Estado. E ainda, não tem seriação, progressão, avaliação de conhecimentos com provas. Não tem professores nomeados, não tem um calendário oficial para toda uma região. Não tem um currículo predeterminado, nem formatura, nem colação de grau, nem vestibular. No entanto, tem educação, formação!

Por não ter esses elementos visíveis, oficiais, comuns às escolas e universidades as pessoas nem percebem que existem. Pensam que Educação é só a Escolar, a que se processa reconhecida pelo Estado, a que aprova ou desaprova, a que entrega o diploma ou não, a que forma os acadêmicos, que vão cuidar da gestão, dos currículos, do sistema de avaliação. Enfim, pensam que a Educação é só a que está dentro do sistema oficial, pago, remunerado, fiscalizado, com prova, com vestibular, com diploma.

No entanto, existe outro sistema de educação, com outra lógica. Não é o dominante, nem o reconhecido e controlado pelo Estado. Porém, também tem currículo, tem conteúdos selecionados ou privilegiados, tem avaliação, tem educadores e educandos, tem formação de professores, tem didática, tem cobrança de resultados. Esse é o sistema aplicado pelos movimentos sociais, pelos sindicatos de trabalhadores, pelas pastorais de igrejas, pelas ONG, pelas oscip, por entidades da sociedade civil organizada desde muito tempo atrás.

Esse processo vem sendo desenvolvido também nas cidades. É aplicado para desenvolver e educar crianças, jovens, mulheres, operários, agricultores, aposentados, favelados, sem terra, sem teto, carentes, meninos e meninas de rua, catadores de lixo, comerciantes, sindicalistas, cooperados, membros de igrejas, de partidos ou de tendências partidárias, arte-educadores, artistas, técnicos e diversos profissionais. Enfim, uma gama de pessoas, sujeitos sociais importantes, protagonistas das mudanças inovadoras na sociedade!

Para facilitar a compreensão vamos partir de três relatos e dentro deles, identificar as etapas do Processo Educativo, ou seja, a Educação que eles aplicam, para entender melhor a Educação que vamos aplicar no Campo ou na sociedade como Técnicos em Agroecologia, como Extensionista, como Educador ou Educadora do Campo.

9.2. PRIMEIRO RELATO – O MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE – MEB

No início da década de 60 o analfabetismo era uma vergonha nacional. Para alfabetizar os jovens e adultos que não tiveram acesso à escola não havia escola que coubesse, não havia professores suficientes, não havia uma pedagogia de alfabetização para adultos, o que havia era para criança. Tão pouco interessava às classes dominantes e dirigentes da época! O jeito foi apelar para um modo não formal para alfabetizar multidões, parecido, mas também, diferente do que se fazia com a escola.

A Igreja Católica através de seus bispos criou o MEB – Movimento de Educação de Base e passou a usar a estratégia do rádio, como meio e instrumento de Educação. Foi necessário montar todo um esquema de formação de educadores para apresentar os programas de rádio, para monitorar o aprendizado dos grupos, de monitores de base para organizar os grupos. Pois, esse pessoal e essa função não existiam ainda. Foi preciso uma mobilização para identificar educandos, formadores, professores, monitores, espaços, emissoras de rádio.

Como esse processo não era oficial, formal, era difícil de estabelecer, de ser reconhecido e financiado pelo Estado. Encontrou muita resistência das classes conservadoras, dos donos de engenho, dos fazendeiros. Foi preciso criar estratégias para se firmar, para se justificar diante da sociedade. Precisaram construir argumentos para defender esse direito ao estudo, pois, na cultura vigente da época era comum pensar que para ser agricultor, cortador de cana não precisava saber ler. Precisavam argumentos para convencer jovens e adultos a estudar.

Quando o processo iniciou sentiu necessidade de uma pedagogia e de uma didática especial para atender a esse novo público, que não era a mesma coisa que ensinar a crianças nas escolas. Era necessário um sistema de avaliação diferente do da escola. Tiveram que pensar outros objetivos para os trabalhadores do campo, os assalariados, diferentes dos que eram apresentados para as crianças nas escolas. Para pensar objetivos, foi necessário mexer com os valores, a filosofia, as concepções de sociedade.

Era um mutirão nacional à procura dessas necessidades. O interesse pela alfabetização dos adultos, para vencer a dívida histórica foi além da igreja, ganhou espaço entre os universitários, os movimentos de Ação Católica que eram fortes na época, os grupos políticos que queriam mudança de sociedade, os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras que estavam se formando. Paulo Freire surge com outros autores mostrando que a alfabetização não deveria ser só para ler as letras, como também para ler a realidade, o mundo, as relações.

As pessoas envolvidas foram tomando consciência que precisava de outra filosofia para dar conta da nova situação criada. A sociedade vigente não comportaria trabalhadores e trabalhadoras conscientes de seus direitos, mulheres conscientes de sua identidade, oprimidos conscientes de sua opressão. Só a alfabetização das letras era insuficiente para tal desafio. Era uma bola de neve, além de pensar todo o procedimento da alfabetização, foram sentindo necessidade de repensar a sociedade, os direitos humanos, as classes sociais.

Os gestores do MEB foram sentindo necessidade de formar novos profissionais para essa tarefa, uma vez que as pessoas que exerciam essa função não tinham sido formadas antes com a filosofia, a didática, os conhecimentos exigidos pelos novos desafios. Foi criado todo um sistema de formação de monitores sob a responsabilidade das equipes diocesanas, e de formação dessas equipes pela equipe nacional. Era uma formação continuada e em serviço, com conteúdos específicos, escolhidos pelos formadores e desenvolvidos com os grupos.

Esse movimento, na medida em que tomava dimensão regional e nacional foi sentindo a necessidade de pensar formas de avaliação dos alunos e dos educadores e dos formadores. Não faziam provas como na escola, mas desenvolveram vários outros meios de avaliar o desempenho e a aprendizagem. Quem mais se desenvolvia numa equipe diocesana era convidado para fazer parte da equipe estadual, quem se desenvolvida na equipe estadual era convidada para fazer parte da equipe regional ou nacional.

Não era um MEC, nem uma Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, porém, criou um sistema de avaliação, selecionou conteúdos, aplicou didática, com produção de programas de rádio, livros, cartilhas. Fez supervisão pedagógica. Construiu um conjunto de valores, de conhecimentos, de relações novas, capazes de dar conta de toda uma demanda que vinha surgindo. Criou um regime de financiamento e estruturas de comunicação. Fazia autocrítica em todos os níveis e todos os envolvidos eram avaliados uns pelos demais

Nessa época foram construídas importantes Emissoras de Rádio, que ainda hoje são referências no Nordeste, como escritórios foram montados em todas as dioceses para atender ao sistema de ensino e aprendizagem do MEB. É importante reconhecer a existência desse sistema em um ambiente não formal, nem escolar, nem estatal. Concluindo, pode-se ver que muitas coisas do sistema formal existem nesse sistema dos MS. Porém, tem muitas diferenças.

9.3. SEGUNDO RELATO – O MOVIMENTO SINDICAL DE

 TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS

Uma das lideranças homenageadas na comemoração dos 50 anos da FETAPE em Nazaré da Mata, cidade da zona da mata norte de Pernambuco foi Euclides Almeida do Nascimento.  Sem dúvida nenhuma, a liderança sindical rural mais significativa até hoje do movimento sindical em PE. Foi fundador do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Nazaré e da FETAPE, que a dirigiu e onde permaneceu assessor até os últimos dias de sua vida. Quem o conheceu o admirou pelas suas habilidades de educador.

Foi uma liderança que emergiu no mesmo período do sistema MEB. Morava em pequena propriedade rodeada por engenhos de cana-de-açúcar. Quando começou a se indignar com a situação dos trabalhadores e trabalhadoras dos engenhos precisou reuni-los, conversar, discutir a situação, mobilizá-los. Não existia ainda sindicato e as Ligas Camponesas começavam a surgir no Estado. Não havia salário, nem nenhum direito hoje gozado pelo trabalhador rural e agricultor: aposentadoria, auxílio doença, maternidade, décimo terceiro… Portanto, ele começou a perceber um direito que era negado e uma situação indesejada que precisava ser mudada.

Reunir trabalhadores dos engenhos para pensar em seus direitos nessa época era um risco. O que hoje é comum, (até o governo convoca e reúne os agricultores!) Mas, na época era arriscado! Euclides, diante do que ele julgou como direito e como missão em sua vida se viu obrigado a descobrir estratégias para falar aos companheiros, que viviam uma situação particular de opressão e de medo. Entre essas, uma foi marcar a reunião em sua casa, pois nos engenhos era impossível. Marcavam reunião à noite ou nos domingos.

Quando os senhores dos engenhos souberam começaram a ameaçar de botar fogo na sua casa e atacar o grupo. Entre sua casa e o armazém de guardar material havia um sapotizeiro com grande copa. Um grupo ficava em cima do sapotizeiro escondido na copa e bem armado e o outro maior fazia a reunião no armazém. Qualquer tentativa de ataque, os de fora protegiam os de dentro. Nessas reuniões se decidia o que fazer, como fazer, o que conversar, como sentir o ânimo dos demais, e se prestava conta de como foi a semana nos engenhos. Portanto, uma série de didáticas para conquistar a confiança dos demais.

Na época, Euclides nunca tinha visto ou ouvido falar de Educação fora da Escola, de conteúdo curricular, de didática, de prática pedagógica, de avaliação. O que ele vivia era um desafio concreto de reunir companheiros numa situação difícil e que, para isso ele teria de ser muito vivo e inteligente, senão, iria botar o trabalho a perder. Ele também percebeu que sozinho não conseguiria alcançar o objetivo pretendido. Era preciso que os moradores dos engenhos assumissem como protagonistas as ações encaminhadas nas reuniões.

Para isso, Euclides teve que desenvolver todo um trabalho de convencimento, de argumentação, de encorajamento para que os companheiros passassem a acreditar no direito que tinham, na capacidade de falar que precisavam, no conhecimento do direito que a lei poderia garantir. Sentiu necessidade de se basear em princípios e crenças que dessem força aos companheiros.  Na época, a principal reivindicação era o salário que não existia. O senhor do engenho pagava como cada um entendia e pelo costume do tempo. Para dar sequência ao trabalho foi sentindo a necessidade de escolher delegados de base nos engenhos.

Os delegados eram lideranças com a tarefa de animar seus companheiros, ou seja, o que Euclides fazia no conjunto com as lideranças, os delegados deveriam fazer nos engenhos com suas bases. Para isso, Euclides sentiu necessidade de formar companheiros, e para isso, sentiu necessidade de selecionar alguns temas mais significativos para desenvolver com eles, de forma que lhes proporcionassem mais coragem, habilidade, confiança, conhecimento e pudessem alcançar o objetivo de fundar o sindicato e conseguir o salário mínimo definido em lei.

Sem saber, de forma espontânea, Euclides começou a criar um currículo, com conteúdos selecionados, que fossem significativos para conseguir o objetivo que queriam. Para discutir esses conteúdos de forma que fossem apropriados pelos companheiros, ele se viu impulsionado a criar estratégias, jeito, formas didáticas que teriam de ser bem pensadas, sob pena de os companheiros serem presos, perseguidos e do trabalho não vingar. É o que na escola chama-se de didática, de técnicas e dinâmicas de ensino e aprendizagem.

Nas reuniões sucessivas, Euclides precisava saber com os companheiros se as estratégias usadas nos engenhos deram certo. Em um engenho dava certo, em outro não, em outro dava mais ou menos. Porque em um deu certo e em outro não! Assim, faziam a autocrítica de suas ações. Os companheiros opinavam sobre a ação do outro, assim, faziam uma hétero-avaliação. Sem perceber, Euclides estava iniciando um processo de avaliação. Enfim, desenvolvia uma metodologia de ensino que se chamou “Educação Sindical”

Vizinho ao município de Nazaré, outro líder também homenageado na celebração dos 50 anos, ainda vivo, José Francisco da Silva desenvolvia ação semelhante à de Euclides no município de Vicência. No município de São Lourenço, outro líder, Agápito também fazia o mesmo, em Carpina, Severino da Luz fazia algo parecido. A ação desses líderes e de outros transcendeu os municípios da Mata Norte e sentiram a necessidade de criar a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura de Pernambuco – FETAPE.

Euclides foi ser dirigente da FETAPE e com companheiros de outros estados que tiveram percurso semelhante criaram a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG e José Francisco foi ser seu dirigente. Com a continuação desse movimento foi se estruturando um grande movimento nacional com um sistema interno de educação para formar seus quadros, para conhecer e diagnosticar a realidade do campo, para avaliar o desempenho de seus membros e os resultados alcançados pelo movimento.

Enfim, construíram todo um sistema de formação de quadros. Não fosse esse processo formativo o movimento não teria suportado a pressão dos governos militares. Esse sistema é de Educação. Porém, não passou pelas escolas, nem pelo currículo escolar, nem foi financiado pelo governo, nem regulamentado por ele, não teve vestibular. No entanto, tem currículo, tem conteúdos apropriados e privilegiados, tem didática, tem avaliação constante, tem estrutura nacional, regional e estadual. Agora já tem uma escola própria.

Se passarmos a observar a história de outros movimentos populares e sociais do campo vamos observar os mesmos passos, com conotações específicas da época, do desafio enfrentado, da região geográfica, todos, porém, com um esquema educacional muito parecido. Todos os movimentos sociais populares do campo desenvolveram uma metodologia de formação de quadros, de lideranças, de participantes. Todos beberam elementos comuns das mesmas fontes teóricas ou de fontes que dialogavam entre si.

Alguns movimentos sistematizaram mais, outros menos. Alguns investiram mais nos meios, outros mais nos conteúdos, outros mais nas estratégias. Os que não fizeram esses passos, nem desenvolveram sistemas de formação de quadros, ficaram pelo caminho, não transcenderam a época, a região e não se firmaram na história, nem foram além de seus objetivos imediatos. Quando dizemos que já existia uma Educação, nos referimos a esse processo, que vamos detalhar bem mais ao longo desse capítulo.

Quase todos esses movimentos hoje têm livros, teses de mestrado e doutorado. Mas muito poderia ainda ser escrito e resgatado, sobretudo, a partir do testemunho oral e escrito de protagonistas que estão vivos. É urgente a construção da memória dos movimentos sociais do campo. O Dicionário de Educação do Campo, recém-publicado traz informações preciosas sobre os movimentos sociais do campo.

 

  • TERCEIRO RELATO – O MOVIMENTO DE EVANGELIZAÇÃO DE RECIFE – PE

Vejamos em outros movimentos a mesma tendência. O autor desse texto em 1970 começou a trabalhar com Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife no Movimento de Evangelização “Encontro de Irmãos”. Esse movimento havia sido fundado em março de 1969, com a equipe de catequese formada entre outras pessoas por João Francisco de Souza, que se tornou depois, autor de vários livros sobre Educação e diretor do Centro de Educação da UFPE e muito conhecido nos meios educacionais brasileiros e América Latina.

Outro membro era Edla Soares, que se tornou membro do Conselho Estadual e Nacional de Educação e foi autora do parecer sobre a Educação do Campo, que deu origem a Resolução de abril de 2002 sobre “As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”, que se tornou o grande marco da Educação do Campo. Eu havia chegado da Europa depois de três anos ausente do Brasil e tive a sorte de entrar nessa equipe, que me introduziu de volta ao Brasil e tinha um assessor do porte do Padre Roberto Etave  e um dirigente do porte de Dom Helder Câmara.

A equipe tinha a responsabilidade de fazer a formação dos monitores dos grupos de evangelização que se formavam nos bairros, sítios e engenhos. Esses grupos escutavam a palavra de Dom Helder em um programa da Rádio Olinda transmitido todas as segundas-feiras à noite. Em cada grupo havia um ou mais monitores para conduzir o debate a partir da palavra de Dom Helder, de um texto bíblico e de um fato da vida real.  As tarefas dessa equipe, entre outras, era a de capacitar e formar os monitores.

Para isso, a equipe criou uma série de instrumentos didáticos de formação: programa diário na rádio Olinda, de 10 minutos, antes da Voz do Brasil, boletim mensal com roteiros para os debates e notícias dos grupos, treinamentos cada domingo em um setor dos bairros da região metropolitana de Recife ou da área rural, visita aos grupos em funcionamento e a realização de um ou dois conselhos por ano com representação desses grupos. Ou seja, tivemos que montar toda uma estrutura de Educação, um sistema de ensino não formal.

Para esse fim tivemos que desenvolver um conjunto de conteúdos, selecionar os que mais se adequavam à necessidade dos grupos. Era diversificado e exigia muita preparação e estudo da equipe. Ao longo dos sete anos que passei nessa equipe os conteúdos variavam de acordo com a evolução dos monitores e grupos. Havia um processo de escolha como na construção de qualquer currículo, seja escolar formal ou não formal. Éramos todos jovens e entusiasmados com essas responsabilidades!

Escolher os conteúdos implicava em saber quais eram as necessidades dos formandos. Mas para pensar os conteúdos, nos debruçávamos sobre os objetivos a serem alcançados pelos monitores e participantes e por nós, ou seja, pelo conjunto. Por exemplo, no início, a demanda maior era para aprender a falar em público. Muitos não tinham boa leitura e pensavam que não saberiam falar. O conteúdo então era dinâmica de grupo para superar o medo, iniciar, desenvolver e concluir um debate.

Outra época era conhecer mais e melhor a bíblia, o conteúdo era estudar a bíblia, conhecer o contexto na qual foi escrita, identificar as ações de Jesus no evangelho, explicitar os gêneros literários de um discurso, de uma parábola, de um milagre etc. Outro tempo, eles queriam aprender mais como a realidade pode ser lida à luz do evangelho, como levar o grupo a uma ação concreta na comunidade local, a resolver problemas vividos pelos moradores. O conteúdo era sobre mobilização social, pesquisa, análise dos dados da pesquisa, planejamento, avaliação…

Os conteúdos variavam de acordo com o nível do grupo. Por exemplo, no Município de Igarassu, sítio Engenho Novo, o problema era de Reforma Agrária. Os donos das terras queriam expulsar moradores com muitos anos na terra, o conteúdo era sobre Direitos e direito à terra. Em Recife houve com as cheias e a construção de estradas a expulsão de muitas famílias, o conteúdo era a defesa de seus direitos, a mobilização social para as famílias aprenderem a se defender, vencer o medo, se juntar, avaliar as ações, planejar as próximas etapas e se inspirar no evangelho.

Para passar e estudar esses conteúdos com as lideranças e essas com os participantes dos grupos tivemos que discutir muitas estratégias didáticas. Era um tempo de repressão, sem liberdade, éramos vigiados. Se a didática não fosse bem escolhida, poderíamos dissolver o grupo, atrair a repressão, as pessoas abandonarem. Para isso, usávamos muitas dinâmicas de grupo, narração de história, dramatização de casos, cantos, poesias, debate em grupo, plenárias, júri simulado, jogos e brincadeiras. Na escola formal chamam essas dinâmicas de didática. Eram sempre momentos descontraídos, mesmo diante de questões perigosas!

Retornando das capacitações, a equipe se avaliava, descrevia os resultados alcançados, como foi a avaliação pelos participantes, o que se avançou, o que não, qual foi o clima do grupo. Havia sempre uma autocrítica, onde os membros da equipe colocavam seus limites, suas dificuldades e essa autocritica ou autoavaliação era complementada pela avaliação dos demais. Esse duplo movimento é que permitia um avanço contínuo da prática e da teoria. Os avanços e os limites tornavam-se de novo conteúdos das novas capacitações, dos programas de rádio, do boletim. Era nosso Sistema de Avaliação.

Em síntese, desenvolvemos todo um sistema educativo, com metodologia, conteúdos, didática, ações concretas, princípios filosóficos, inclusive, com fundamentação bíblica, jurídica, histórica, política. Os grupos foram dando origem a outros que se especializavam. Em 1971 se organizou o setor jovem, que mais tarde contribuiu com a formação da Pastoral da Juventude Popular, em 1972, foi a vez do setor rural, em 1973, foi a vez do Movimento das Crianças, que fortaleceu o MAC – Movimento Amigo das Crianças, hoje Movimento de Adolescentes e Crianças.

E assim, outros como os deficientes físicos, as empregadas domésticas, os operários da indústria, dentro da categoria dos operários os grupos de tecelões, metalúrgicos sentiam necessidade de se estruturar a parte com suas demandas específicas. Com o avanço da democracia, algumas lideranças entraram nos sindicatos, na política partidária, nos movimentos de saúde alternativa, fitoterapia, agricultura orgânica, ambientalista, de gênero, raça e etnia, de arte e cultura, de bairros, sem-terra e sem teto, de escolas comunitárias e criação de entidades, como ong.

  • CONCLUSÃO SOBRE OS TRÊS EXEMPLOS

Esses três relatos, do MEB, da FETAPE, do Encontro de Irmãos são apenas ilustrações rápidas de uma infinidade de vivências e experiências. Cada movimento social que nascia, cada ong que se criava, cada ação mobilizadora que se conduzia, havia uma pedagogia implícita, embutida, estruturando os passos de uma ação. Há também embutido um projeto de sociedade e um conjunto de princípios, de opções éticas responsáveis por uma metodologia que é aplicada, ou de forma consciente, explícita ou de forma oculta, não verbalizada nem sistematizada.

Essa educação é conhecida pelo nome de Educação Popular. Ela tem sido sistematizada, avaliada, teorizada por inúmeros autores. De forma muito especial foi desenvolvida na América Latina, mas é aplicada também em outros continentes. Tornou-se uma Teoria da Educação. Paulo Freire é um dos seus principais teóricos reconhecido mundialmente. Em cada MS que for estudado, vamos observar esses elementos que compõem a Educação Popular, que é o sistema de educação usado pelos movimentos sociais.

A Educação Popular que antes era usada só nos ambientes não formais de Educação passou por várias situações históricas distintas. Houve época em que ela foi perseguida e temida pelo Estado e pelos Governos. Com os resultados alcançados e com o avanço dos MS, o Estado passou a respeitar mais. Com o Governo Lula, a Educação Popular passou a inspirar  ações governamentais de Ministérios,  Secretarias, Programas, Projetos. Muitas lideranças que desenvolviam a Educação Popular passaram a fazer parte do Governo, inclusive, o próprio Presidente Lula.

Lula teve toda sua formação dentro da Educação Popular (EP). Ele mostrou que a Educação Popular possibilita formar lideranças até para funções de Presidente. Muitos deputados federais, estaduais e vereadores também tiveram sua formação nos MS, na EP. A EP passou a inspirar Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional, de Combate à fome, de Desenvolvimento Territorial, de Economia Solidária, de Igualdade Racial, de Ação Social, Saúde, de Agricultura, de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) entre outras.

Passou, sobretudo, a inspirar a Educação do Campo, que ganhou status de Politica Pública, mas que se restringiu só a programas e projetos. Não interagiu com as escolas a não ser em alguns programas. O Serta, nascido e desenvolvido dentro da EP fez a síntese entre essa e a Educação Formal. No Curso Técnico desenvolve o Sistema de Educação Popular, interagindo com os elementos formais, como a certificação, a avaliação com notas, o diário de classe, o diploma, currículo por disciplina e área de conhecimento, as chamadas com presença e falta, professores formados na academia, prestação de contas junto a Secretaria Estadual de Educação.

É comum a formação profissional inspirar-se apenas nos elementos da Educação Formal. O Serta tem esse diferencial em ter construído um Curso Técnico baseado no Sistema da Educação Popular, na definição dos princípios e valores, no currículo, nos conteúdos, nas didáticas, nos objetivos da formação, nas práticas agroecológicas, nas avaliações, na priorização das pessoas, no estudo da realidade, na mobilização social, nas ações concretas na propriedade e comunidade, no estudo do direito, da cidadania, no respeito à subjetividade, na valorização da convivência, no protagonismo dos educandos. Tudo isso hoje interagindo com os elementos da Educação formal. É a proposta que o Serta chama de Peads – Programa Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável.[1]

[1] . O próprio Governo Federal chegou a publicar o “Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas”, através da Secretaria Nacional de Articulação Social, documento que faz uma síntese do que seja a Educação Popular na compreensão dos que hoje compõem o governo.

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