1.7 CONCEPÇÃO DE MUNDO E DAS RELAÇÕES ENTRE PESSOA E NATUREZA

Texto Didático para estudo com professoras e
técnicos em Agroecologia, versão inicial em 2003

 

Como a concepção de pessoa que se tem determina as nossas relações com os outros e as outras, a concepção de mundo e natureza que se tem determina a maneira de se relacionar com a natureza. Do cientista mais esclarecido ao agricultor familiar mais simples, todas as pessoas têm um entendimento, uma maneira de explicar a natureza e as relações entre a natureza e as pessoas.  Vamos aprofundar essa questão nesse texto.

Diante de um mesmo fato, há concepções diferentes e, portanto, interpretações, compreensões, significados e sentidos também diferentes. Por exemplo, diante da exuberância da Mata da Amazônia, da Mata Atlântica ou da Caatinga há quem pense e interprete de um jeito, e há quem faça de outro. São as mesmas paisagens, mas os olhares são diferentes, às vezes até contrários, e até antagônicos. Em uma concepção, as pessoas pensam que a vegetação exuberante da mata está lá para gerar dinheiro para as empresas madeireiras. Para isso e por conta dessa concepção, derrubam toda a árvore que serve para fazer madeira e exportam para outras regiões e para o exterior, ou para fazer lenha e carvão.

No entanto, há outra concepção, que vê a vegetação sujeita a determinadas leis físicas, químicas, biológicas, que merecem um trato muito especial, para manter a temperatura e o clima do mundo em condições saudáveis. Para manter a água doce, manter a vida da população local, manter as espécies de vida, a biodiversidade animal e vegetal. Por consequência, as pessoas pensam outra forma de desenvolver a região. Propõem uma economia que produza a vida, um mercado que favoreça o ganho e a renda das pessoas do lugar com dignidade e respeito, que aproveite mais e melhor os recursos ambientais, que preserve a biodiversidade.

Essa diferença em olhar a mata, em conceber o papel da vegetação, em pensar o desenvolvimento provocou o conflito no qual, os aderentes de uma concepção assassinaram a Irmã Dorothy, missionária católica que atuava na região do Pará. A mesma diferença continua perpassando por vários outros conflitos, que eclodem pelo Brasil. Esse texto pretende aprofundar essas concepções, essas maneiras de olhar para o mundo e a natureza.

8.1.       A CONCEPÇÂO PREDOMINANTE NA ÉPOCA MODERNA

Atualmente, existem fundamentalmente duas concepções básicas da natureza e das relações entre as pessoas e a natureza. Uma que predomina, sobretudo a partir do Renascimento, século XVI, que avançou muito com o desenvolvimento das ciências, no período da história, conhecido como “Época Moderna”.

É a concepção que entende a natureza subjugada ao homem. O homem nessa maneira de conceber é o Rei da Natureza. A natureza está aos seus pés, “como escrava” (BACON, Francis). Cabe ao homem explorá-la, tirar o proveito que puder para o seu conforto, os seus desejos e necessidades.

Para tratá-la dessa forma, o homem tem uma grande aliada, uma ferramenta muito apropriada e eficiente, que é a Ciência Moderna. A ciência moderna ajudou o homem a vencer as leis da natureza, a superá-las, a utilizar os rios, as águas, os ventos, as chuvas, os solos, as plantas de acordo com o interesse das pessoas. Essa concepção provocou no homem relações de dominação, como entre um rei e um escravo.

A ciência, e o que deriva dela, como a economia, a política de desenvolvimento, a forma de administrar o país contribui para manter essa relação. O que “interessa é o interesse” do dominador, do senhor, do homem. Inclusive em relação à mulher!

Quando essa concepção criou força e foi se explicitando, foi o tempo que os países latino-americanos, a África e a Ásia passaram a ser colonizados pelos europeus.  Imbuídos dessa concepção, quando os portugueses viram nossas matas, entenderam logo como oportunidade de ganhar dinheiro, pois esse era o seu interesse.

O Pau Brasil, com a cor de brasa que tinha, servia para uma tinta famosa na época e para móveis de luxo. O colonizador não pensou duas vezes, passou a se relacionar com os índios para que os índios facilitassem o corte, o transporte do pau Brasil, até quase a extinção da espécie na mata atlântica.

Já o colonizador espanhol quando viu o ouro dos Astecas no México e a prata dos Incas no Peru, não tiveram o menor escrúpulo em destruir suas cidades para saquear os tesouros de ouro e prata e a transformá-los em barra para facilitar o transporte de navio para a Europa.  O que interessava ao colonizador era a riqueza que iria encontrar nas Américas.

Nessa época estava se formando essa concepção, que o mundo estava para ser conquistado, os mares para serem navegados até o limite da capacidade humana, que os medos teriam de ser superados, que o homem não precisaria mais se subjugar às forças da natureza, nem ao mundo sobrenatural e sim, o inverso.

Desde essa época histórica, que o homem moderno vem ampliando essa concepção, firmando-a na mente das gerações, sobretudo nos países europeus do ocidente, liderados pela Inglaterra, França e Alemanha, e nos Estados Unidos e Canadá.

Essa concepção, com relativa facilidade, foi se ampliando não só às relações entre o homem e a natureza, como também entre o homem rico e o pobre, entre o branco e o negro, entre o colonizador europeu e o índio, entre o homem e a própria mulher. Alargou-se no mundo entre os países ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres (Dom Hélder Câmara).

Vandana Shiva, autora indiana e engenheira nuclear tem um livro que mostra como a concepção de mundo do ocidente terminou se transformando em uma concepção machista, dominadora não só da natureza, mas também da mulher e destruidora do meio ambiente.   As mesmas ideias estão trabalhadas no livro de Fritijop Capra, A Sabedoria Incomum.

8.2.      UMA CONCEPÇÃO DIFERENTE

Há outra concepção diferente dessa, que em vez de conceber o homem como senhor do mundo, fora do mundo, concebe como participante do mundo, dentro do mundo, sujeito às leis da natureza, como os demais elementos que a compõem. Essa concepção também usa a ciência, mas com outro fim. Usa a ciência para facilitar a lei da natureza, numa relação de cooperação, não de exploração ou de dominação. Também como a outra concepção tem consequência na vida prática, na economia, na política, no governo, nas relações entre pessoas, entre gêneros, entre países e nações.

Pegando o exemplo do Pará e do Acre onde já aconteceram as mortes da Irmã Dorothy e a de Chico Mendes no Acre, porque morreram? No fundo está o choque de duas concepções. Ambos queriam um desenvolvimento com os povos da floresta, possibilitando o “manejo sustentável da mata”.

Para ambos, essa forma de manejo era suficiente para as pessoas viverem dignamente, utilizarem a madeira, as essências, os frutos, o mel, sem agredir a natureza, deixando seus elementos se perpetuando para todas as gerações futuras que viessem a habitar o planeta naquele território. Essa concepção reconhece a história do lugar valoriza os conhecimentos dos antepassados, dos índios, dos seringueiros, os recursos locais.

Essa concepção também inspira um modelo de desenvolvimento, que em vez de deixar o lucro para as empresas madeireiras do estrangeiro ou do sul do país, deixa as riquezas para melhorar as condições de vida das pessoas do lugar. Para isso, a ciência aplicada no território deve produzir conhecimentos, ferramentas, equipamentos que ajudem a natureza a manter suas leis, a biociência ajude a aproveitar as riquezas que existem no solo, nas plantas, nos microrganismos, nos animais. E que valorize as riquezas das pessoas, da cultura, da história local.

 

8.3. RESULTADOS NA VIDA PRÁTICA DESSAS CONCEPÇÕES

Como dá para perceber, trata-se de ideias, de maneira de pensar, de ser, de comportar-se diferente. Uma concepção leva a determinados tipos de atitude e outra leva a outros tipos. E essas atitudes são de vida prática, são de vida cotidiana.  E quem a aplica e desenvolve essas concepções não são somente os estudiosos, os pesquisadores, os intelectuais, os governantes e políticos. O agricultor familiar, o assentado da reforma agrária, o usineiro, o jovem, a professora, o gestor público ou privado também desenvolvem essas concepções.

Temos por exemplo entre os agricultores ou agricultoras familiares aqueles que plantam, criam, vendem, mas que da natureza só pensam em tirar, em explorar, em conquistar o sustento da família, dos seus animais e das suas plantas. O que interessa para eles é ganhar mais, produzir mais. Se para ganhar mais for necessário acrescentar adubo químico, eles acrescentam, se for necessário por veneno no mato para ganhar mais rápido, eles põem, se for necessário para o ganho usar o agrotóxico contra as pragas, eles usam.

Essa concepção usa a natureza como se tivesse fora dela, usa equipamentos e materiais desenvolvidos pela ciência para explorar mais ainda. Não se importa com as leis da natureza, o que devolve e joga na terra é aquilo que não faz bem a ela, pelo contrário, prejudica. Impede que as leis da natureza cumpram sua função. Esse agricultor ou agricultora que faz isso não vive nas cadeiras das universidades. Isso prova que para desenvolver concepção, para ter filosofia, todas as pessoas fazem e possuem. E prova também como a concepção que a pessoa tem da realidade tem consequências no dia-a-dia da vida.

Vejamos o caso do agricultor que pratica a Permacultura ou a agricultura orgânica. Ele sabe que não é suficiente cuidar da planta, dos animais e da família. Tem outro componente que ele precisa cuidar que é exatamente, o que dá a vida à planta, aos animais e à família. Esse componente é a natureza com todos os elementos que fazem parte dela: o solo com os microrganismos, os fungos, as bactérias, os insetos, as águas, as plantas, o clima, a temperatura, o vento, o sol, etc.

Esse agricultor ou agricultora trata o solo e a natureza com carinho, em cooperação, facilitando o trabalho da própria natureza. Por exemplo, em vez de por um veneno para matar o mato que cresce entre as plantas, ele ou ela pega os matos e os trata como a natureza gosta de fazer, facilita o trabalho dela. E como a natureza gosta? Gosta de fazer do mato, o alimento para o solo, para os microrganismos. A natureza quer esse mato de volta, transformado outra vez em terra.

Vejamos esse quadro comparativo entre as duas concepções para facilitar a compreensão:

  1. HOMEM FORA DO MUNDO E SENHOR
  1. HOMEM E MULHER PARTE DO MUNDO
Explora e supera as leis da natureza Coopera e facilita as leis da natureza
Considera-se fora das leis da natureza  Obedece e considera-se parte da natureza
Usa a ciência e a técnica para dominar a natureza e superar os seus limites. Usa para facilitar e favorecer o funcionamento das leis da natureza
Considera a natureza com os componentes fragmentados, sem interconexão, acha que pode mexer com as matas sem levar em conta as consequências e médio e longo prazo. Considera a natureza como um todo, um conjunto de componentes interconectados, articulados entre si e que não se pode atingir um só componente.
A ética que usa é a do mercado, imediatista, do lucro, do resultado econômico para quem tem dinheiro para investir. A Ética que usa é a do respeito pelas gerações futuras, os resultados devem ser olhados em relação à comunidade e ao futuro e não só ao presente e ao indivíduo.
Extrapola com facilidade o domínio para as próprias pessoas, as mulheres, o pobre, o rural, o excluído. Trata as outras pessoas, grupos e nações com o mesmo espírito que trata a natureza, cooperando e facilitando a vida.
O modelo de desenvolvimento escolhido não leva em conta o capital ambiental, o custo, as necessidades do meio ambiente. O modelo escolhido leva em conta o equilíbrio com o meio ambiente, as pessoas do presente e do futuro.
Na política o meio ambiente, a sustentabilidade e o futuro não entram na agenda como questão prioritária. Na política o meio ambiente, a sustentabilidade tem que ser pauta prioritária, porque do seu equilíbrio vai depender a sobrevivência das gerações.
O limite das possibilidades é o homem, o seu interesse, a sua capacidade, a sua criatividade e ousadia. O limite das possibilidades é a natureza com seus próprios limites, que se respeitados, possibilitam a vida se não, levam a morte.
Uma mata é vista como possibilidade de ganhar dinheiro vendendo madeira, lenha e carvão e deixando espaço para capim ou soja. Uma mata é algo mais amplo, espaço de vida, produtora de oxigênio, expressão da biodiversidade, responsável pela manutenção do lençol freático e precisa de tratamento específico.
Um rio é visto como possibilidade de irrigação para agricultura, espaço para facilitar os gastos de quem precisa fazer esgoto, juntar lixo. Um rio é visto como ambiente de vida, de espécies, que pode ser usado para irrigação, mas tem que levar em conta os cuidados para não se contaminar.
O investimento econômico é visto como meio de ganhar mais dinheiro. O investimento é visto como possibilidade de ganhar dinheiro, mas pode ganhar outra coisa tão valiosa quanto o dinheiro, a manutenção da vida no planeta.

 

Leituras e atividades complementares

Boff, Leonardo, Saber Cuidar, Editora Vozes de Petrópolis.

____________, Ecologia, Editora Vozes de Petrópolis.

Capra, Fritjop, O Ponto de mutação.

___________, A sabedoria em comum.

___________, Alfabetização ecológica.

Jara, Carlos Júlio, A sustentabilidade do Desenvolvimento Local IICA, 1998.

______________, As dimensões intangíveis do desenvolvimento, IICA.

George, James, Olhando pela terra, o despertar para a Crise Espiritual/Ecológica, Gaia, 1998.

Schwarz, Walter e Dorothy,  Ecologia: Alternativa para o futuro. Paz a Terra.1990.

Ana Primavesi, Manejo Ecológico do Solo, a agricultura em regiões tropicais, Nobek 1988,

Permaculturapedagogica.blogspot.com do Professor Roberto Mendes.

 

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