1.3 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ESCOLAR

Texto escrito como continuidade do anterior para
aprofundar a questão com o mesmo grupo de educadoras.

Introdução

Com a leitura do texto anterior ficou mais fácil entender algumas perguntas que atormentam professores e alunos. Porque a escola só cobra prova! Porque a escola só se interessa em verificar nosso conhecimento! Porque a Escola se pergunta tão pouco pela subjetividade dos estudantes! Porque a Escola não valoriza a prática! Porque a escola é tão desligada da cultura, dos aspectos locais das comunidades! Porque a escola é tão universal, do Oiapoque ao Chuí, do litoral ao sertão, da cidade ao campo! Porque não se explicita os valores com os quais os professores ensinam! Porque não se cuida tanto da cidadania!

A questão é muito complexa, mas podemos contribuir com alguns elementos para essa compreensão. Em diversos textos falamos de currículo oculto. Recordemos algo. É o currículo que não se explicita, que fica nas entrelinhas, nas posturas, nas escolhas, mas que necessariamente não aparece nos conteúdos.[1]

O Currículo Oculto

Exige análise do discurso para compreender. Vamos ilustrar com o exemplo mais clássico que falo em outros textos. Quando a professora diz para o menino do campo Menino, estude porque se não, você vai ficar feito seu pai… no cabo da enxada! Eis aí um discurso aparentemente inofensivo. Porém, revela uma filosofia com diversas concepções. De vida, de objetivos de vida, de criança, de educação, de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, de desenvolvimento, de realização e felicidade, de valores. Enfim, de antropologia, cosmologia, ontologia, ética, estética, crítica, lógica.

A educadora que enuncia esse postulado está com a melhor das intenções, quer ver a criança do sítio se desenvolver, ser gente feliz, com emprego, no melhor local para se viver que é a cidade, local onde o desenvolvimento é melhor do que no campo, onde se convive mais próximo um do outro, onde as pessoas são mais belas. A educadora está ciente e consciente de que essa é a melhor opção para a criança, jovem e adolescente pensarem seu futuro, para tal objetivo ela estudou e agora está dando duro, se sacrificando para que o menino entenda isso, reconheça sua boa vontade e a importância do que ela está ensinando e ele aprendendo.

A professora por sua vez é exemplo vivo, ela já fez esse percurso. Pode até já ter saído do próprio sítio, ter deixado para lá os conhecimentos e as práticas da família, ter superado tudo e hoje é professora do município ou do estado, está ganhando melhor que seus pais, avós que ficaram no sítio. Pela faculdade que fez, pagou, suou para se formar e pelo nível econômico e social que chegou, acha ser isso o que ela precisa ensinar e o aluno a aprender. Se o estudante não quiser aprender dessa forma é porque é um coitado, que não quer crescer na vida. Prefere ficar mesmo no mato!

Em outras palavras, a professora está expressando a sua filosofia de vida, suas concepções de educação. Mas os textos do currículo não apresentam isso. Falam é de escrita, de leitura, de vogal, de adjetivo, de verbo, de operações matemáticas, de lições de história, de geografia, de ciência natural etc. Daí, os estudiosos dessa questão chamar de currículo oculto, porque não faz parte dos textos, não se coloca na caderneta, não há prova. O sistema não cobra, nem avalia essa dimensão. No livro sobre os princípios da Peads já mostramos as consequências no inconsciente da criança que escuta esse argumento.

Houve um fato curioso em uma escola rural de Monteirópolis em Alagoas. A professora contou que próximo à data do dia das crianças, pediu aos alunos para desenharem o que gostariam de ganhar como presente. Saiu de tudo, boneca, bicicleta, celular, mp3, bola, roupa, e coisas do gosto das crianças. E no meio de tantos desenhos, um aluno desenhou uma enxada. Foi um espanto para a professora e suas colegas. Interpretaram o desenho como sinal de desinteresse pelo desenvolvimento pessoal, como se a criança não quisesse se promover na vida e preferiu o símbolo do atraso e do adulto matuto, do sítio!

Se não fosse a pouca informação que tiveram sobre a Peads iriam aconselhar o menino para preferir outras coisas como as demais crianças. Com a Peads, a reação mudou, viram a grandeza da criança em ser como seu pai, feliz, honrado, capaz, por cuidar da terra, por ser do campo. Por coincidência, nessa mesma semana, algumas professoras ouviram falar na Peads. Perguntaram a criança o porquê da escolha e essa respondeu que desenhou uma enxada porque quando crescesse, queria ser como seu pai, um agricultor! Queria uma identidade não estimulada pela escola.

Currículo oculto e às vezes até inconsciente!

Muitas professoras que usam discurso como esse em relação ao campo, ao rural, ao negro, à mulher, não imaginam que são filósofas, não imaginam que tem concepção filosófica, não imaginam que estão ensinando filosofia ao passar uma tarefa de desenho e interpretar a partir de suas concepções. Enfim, não imaginam que filosofia é uma questão tão simples e tão próxima do cotidiano das pessoas. Imaginam a filosofia como uma disciplina difícil e uma habilidade de grandes estudiosos e pensadores. Inclusive, que escrevem difícil e complicado. Quem lida com coisas simples não vai se interessar por filosofia.

Não há Ciência nem Educação sem Filosofia

O que se pode observar hoje é que o raciocínio de Descartes foi uma desculpa para conquistar liberdade de pensamento. Dizer que a ciência era só das coisas comprovadas matematicamente não deixa de ser uma opção filosófica sobre o conhecimento. Para ele a concepção de ciência é essa. O fato é que esse sofisma (pensamento que se apresenta como certo, mas é equivocado) prevaleceu e se implantou como verdadeiro e produziu uma ciência que se pretende sem filosofia, sem cultura, sem subjetividade, universalista, sem valorizar a prática, o senso comum, a história, o território.

Quando essa filosofia implanta-se e se impõe nas escolas dos países subdesenvolvidos deixa de considerar a filosofia que interessaria a esses países e repassa outra que mantém o subdesenvolvimento, que mantém o desinteresse pela cultura local, pelas questões desafiadoras da população. Deixa, portanto, de ser instrumento, de ser útil para a construção do desenvolvimento que interessa ao Nordeste, ou a África, ou ao Amazonas. Não mergulha na realidade, passa distante, de forma abstrata, racional e universal, não reconhece particularidades.

Isso porque no raciocínio do iluminismo, particularidades tirariam o caráter universal da ciência, religião a mesma coisa, cultura, a mesma coisa, subjetividade, pior ainda. O currículo de uma escola então tem que se manter por fora dessas realidades, o aluno “tem que se preparar é para o vestibular”! Esse é o dogma científico que se impôs para a escola que nasceu no auge do iluminismo, do primado da razão e do positivismo. Essa filosofia, ou seja, essa maneira de conceber a ciência e o seu papel não é questionada, nem mesmo nos cursos universitários. As pessoas assimilam sem a crítica.

Quando a Peads insiste em explicitar o currículo oculto quer dizer explicitar a filosofia, o fim a que veio, o objetivo da aprendizagem, do ensino, das disciplinas, do ppp. E que essa filosofia seja assumida pelos professores, alunos, gestores, comunidade escolar e entorno. Porque precisamos dela. Precisamos de uma filosofia que nos liberte do colonialismo intelectual e econômico, da qual o índio possa fazer uso para afirmar a sua identidade e sua história e projetar o seu futuro na sociedade brasileira, onde o negro possa reconhecer o seu passado e identificar as amarras que sofreu.

Uma filosofia que faça o agricultor despertar para sua condição social, política, econômica e possa aplicar a ciência comprometida, a serviço da sua libertação, emancipação e não da sua subordinação e dependência. Se não for assim, a escola continuará perpetuando seus preconceitos. As mulheres, tradicionalmente vítimas de todas as formas de opressão machistas precisam de uma ciência que venha associada, acompanhada de uma filosofia, que contribua com o seu processo de emancipação e afirmação de sua identidade, legitimidade de suas lutas, reconhecimento de seus direitos.

Os homossexuais e outras minorias sociais precisam fazer ciência com uma filosofia, com concepções sobre a vida, o sexo, o direito, a sociedade, as relações sociais articuladas com a construção dos conhecimentos. E assim, as pessoas, os grupos, as comunidades, os estados, os países. A associação entre Filosofia, Teologia, e outras formas de conhecimento que representavam ameaças no tempo de Descartes e seguidores, para nós a ausência dessa associação representa a grande ameaça. Fazer essa leitura é fazer também a filosofia da história, é conceber para que é a história.

O positivismo europeu não só contaminou a ciência

O positivismo e iluminismo da Europa contaminaram também a teologia das igrejas europeias, quando se expandiram para os demais continentes. Foi uma maneira de fazer ciência que permitiu a convivência com a escravidão, o silêncio diante do extermínio dos índios e povos autóctones. E se perpetuou até o século XX. Daí, os teólogos Gutierrez, Leonardo Boff, Frei Beto, e outros, como bispos como Dom Helder de Recife, Dom Tomaz Balduíno de Goiás, Mendes Alceo do México, Oscar Romero de El Salvador e outros reclamarem da necessidade de repensar a teologia e dizer que ela precisa ser de Libertação.

Não dava mais para evangelizar e anunciar o Reino de Deus, como se a fé não tivesse a ver com a emancipação dos pobres e oprimidos, dos rurais, dos indígenas, dos negros, das mulheres, como se a fé não tivesse a ver com o Meio Ambiente, com o Desenvolvimento, com os modelos de gestão dos países. Era preciso então uma “teologia da libertação”, que envolvesse a história da opressão, do colonialismo, que acolhesse a nossa cultura e as nossas tradições, que implicasse no compromisso pessoal, na subjetividade dos fiéis, que reconstruísse outro destino e percurso da história.

Não poderia ser as mesmas expressões de fé da Itália, do Japão, do Canadá. Deveria ser expressões latino-americanas, ameríndias, africanas, nordestinas, gaúchas, amazonenses, sem perder os elementos universais da fé. O que não quer dizer diminuição da fé, mas aprofundamento. Para essa teologia, como para a ciência, era preciso filosofia e uma nova filosofia da história, outra interpretação ou reinterpretação. Daí a proximidade dos teólogos da libertação com a filosofia marxista da história. Sabemos que Marx foi o grande impulsionador da filosofia da história.

Fortalecendo essa corrente, levantaram-se inúmeros historiadores mostrando outro lado da história, outro lado da moeda. Mostraram que a história não foi tanto assim como as autoridades e a hierarquia descreveram. Há muitos outros autores na história que os livros de história não relatam. Há outros pontos de vista, dos oprimidos e sofridos, dos fiéis e do povo que não foram considerados na história, portanto, essa história, ou melhor, essa ciência histórica que repassam nos livros e nas universidades não representa a totalidade, nem a universalidade, nem a verdade, e sim lados, dimensões![2]

Conforme a concepção filosófica que a pessoa tenha, lê e interpreta os fatos da história, não há ciência histórica sem filosofia da história. Não há teologia sem filosofia e muito menos, ciência sem filosofia e muito menos ainda, pedagogia, didática e seleção de currículo sem filosofia. Como foi sentida a necessidade de reinterpretar a ciência, a filosofia, a teologia, a história, os autores e protagonistas da Peads sentiram necessidade de reinterpretar a educação escolar e reconstruí-la com nova filosofia, com nova forma de compreender a ciência e de desenvolver conhecimentos.

 A Peads concentra, canaliza esse esforço comum de repensar filosofia, ciência, currículo, didática, gestão, avaliação, sistema educacional, política pública, prática pedagógica a luz de um conjunto de valores, de concepções. Sobre as principais concepções já construímos textos para os quais convido o leitor.

[1] . Verificar os estudos de Jean Claude Forquin, Escola e Cultura, as Bases Sociais e Epistemológicas do Conhecimento Escolar, Artes Médicas, Porto Alegre, 1993.

[2] . Entre os principais autores que revertem a maneira dominante de apresentar a história, temos Henrique Dussel da Argentina, Eduardo Galeano do Uruguai, Eduardo Hoonaert, belga radicado no Nordeste do Brasil, e toda a Comissão de História para a América Latina, liderada por Dussel, com representantes dos diversos países. In História da Igreja no Brasil, Vozes de Petrópolis, RJ, 1980 e Formação do Catolicismo Brasileiro 1500 a 1800 de Eduardo Hoonaert, Vozes de Petrópolis, RJ, 1974.

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